Advertência: esse post fala dos sentimentos durante a pandemia da covid-19. Se é um assunto que te causa ansiedade sugiro abandonar este post. Talvez a página anti ansiedade sobre a covid-19 seja útil para você. Ela foi projetada para transmitir apenas as informações essenciais.
Essa na foto não é minha mãe, não tenho como tirar uma foto da minha mãe na janela da sua casa porque nem eu, nem ela, podemos sair e moramos há 2h de carro um do outro.
Tem gente que tem raiva do vírus. É um sentimento estranho como ter raiva da chuva ou do mosquito que nos morde… Bem, do mosquito que zumbe nos ouvidos a gente pode ter raiva sem culpa, mas é meio tolo ter raiva de coisas que sequer tem qualquer intenção, no caso dos vírus sequer tem vida.
Nós provavelmente estamos transferindo nossa raiva para algo de que possamos ter uma raiva mais pura, irrefletida, sem desdobramentos geopolíticos que nos irritariam ainda mais.
No entanto minha mãe está ali na telinha do celular sorrindo para mim e perguntando se eu sei quando poderemos sair de casa. Não é hora de ficar vagando por esses pensamentos pois tenho que buscar outros, tenho que achar algo para dizer à minha mãe.
– É… mãe… – suspiro e gaguejo um pouco – eu gostaria de poder te dizer algo, mas o Brasil está abandonado pela classe política e não temos como saber nem mesmo se estamos no começo da escalada de mortes ou no meio… Receio que a única certeza é que estamos longe do fim da escalada e quem sabe quanto tempo as mortes diárias demorarão para descer. A ladeira de descida lamentavelmente deve ser muito menos íngreme que a de subida.
Eu não minto para a minha mãe. Sei que ela espera sinceridade de mim e que a fé religiosa dela também é sincera e lhe permite lidar com a ansiedade diante de tanto descaso com as vidas humanas.
Mudamos de assunto. Ela fala dos tucanos que pousam de vez em quando em suas árvores (ela mora em uma casa e quintal grandes) e do aumento de vida selvagem por lá porque as ruas estão mais vazias apesar de muita gente estar fazendo churrascos e se aglomerando.
Lembro como as pessoas se aglomeravam muito mais aqui ao redor até pouco mais de um mês enquanto minha família já está em lockdown há quase quatro meses.
Vi as aglomerações e visitas dos vizinhos diminuindo semana a semana. Imagino que a realidade da pandemia foi chegando a eles em consequência de não se protegerem, devem ter perdido amigos, parentes ou talvez tenham apenas vivido umas duas semanas em um hospital sobrecarregado com um tubo cravado goela abaixo.
Fui internado duas vezes na minha vida adulta. Tenho 53 anos. Só uma foi uma internação mais séria, em 2018 quando tive herpes zoster e fiquei quatro dias com uma agulha discreta se intrometendo na minha veia para prover os remédios de que precisava. Foi muito ruim. Tinha um quarto só para mim numa unidade de saúde pública. Dois enormes privilégios por ser brasileiro e termos conquistado um sistema de saúde universal que ainda funciona apesar de vir sendo atacado nos últimos anos. Atacado pelos governos que se dizem de direita… É estranha a direita moderna que deixa a força de trabalho e de consumo ser consumida…
Minha mãe está rindo! Estamos falando da nossa cachorra e dos nossos cortes de cabelo. Eu e minha esposa passamos a máquina 4, ou seja, o pente de 12mm. Estamos parecendo escritores cult dos anos… 60? Os dos anos 70 eram cabeludos, né? Se não parecemos escritores cult talvez lembremos sociólogos cult. Bem, estamos com bem pouco cabelo e estamos adorando nossas caras sem molduras.
Minha mãe ri fácil ou talvez eu tenha quase 5 décadas de experiência em fazê-la rir apesar de também já tê-la feito chorar quando meu pai se pôs ou foi posto para fora de casa e eu tinha uns 15 anos. Que conste que ele estava errado. Quase sempre é o homem que está errado, muito embora costume-se culpar a mulher. Ainda assim minha mãe ficou arrasada. Passou dias no quarto até que coloquei A Noviça Rebelde para tocar na vitrola (começo dos anos 80, gente, era vitrola…) porque sabia que isso a faria ver que poços precisam ter fundo. Ela chorou, mas saiu do quarto e foi para a igreja.
Era uma igreja presbiteriana. Hoje ela é espírita… minha mãe, não a igreja; a quebra de paradigma ainda não foi tão radical e talvez rupturas tão radicais não aconteçam no final das contas. Enfim… Era uma igreja presbiteriana e acabei indo para lá também. Mais por curiosidade ao saber que tocava rock&roll o que me deixou muito intrigado, afinal religiões eram locais de aceitação e o rock era uma estrutura de contestação. Foi lá que conheci minha esposa…
O que aconteceu com as religiões. Fico pensando se aquelas pessoas religiosas dos anos 80 seriam apoiadoras do fascismo, se elas dariam braços às palavras de ódio, preconceito, ignorância e desrespeito pela vida que vemos muitos religiosos de várias religiões indo se curvar diante dos altares de ouro e ganância. Cultos de distorção das palavras de todas as bíblias.
Mas onde eu estava mesmo? Ah! A gargalhada límpida da minha mãe ali na tela do celular, minha sogra também segura morando conosco esperando pela passagem de um tempo que não sabemos avaliar, que ninguém racional se atreve a estimar.
Pois é, mãe…. Não sei quando poderemos sair, mas sei que temos que fazer o melhor para sermos livres entre as paredes dos nossos apartamentos e, se forem minúsculas residências onde a maioria das pessoas moram, que ainda assim seja possível encontrar uma cultura, uma causa, uma razão para sermos mais do que os nossos governos macabros.
Foto por Shreya Sharma no Unsplash