Imagem: Cristian Newman

O tema da redação do ENEM foi a educação para surdos.

Vi duas pessoas reclamando até agora, uma adolescente que fez a prova e um contato que pode ser qualificado como cientista político.

Temos que mostrar, em uma prova dessas, que entendemos qual foi o tema proposto, logo não podemos enveredar nossos parágrafos por caminhos tortuosos para falar da surdez crônica que aflige o nosso pensamento político, nossas reflexões morais por exemplo.

Temos que falar das dificuldades que uma pessoa com limitações auditivas enfrenta diariamente, tanto no sistema de ensino, quanto nas atividades cotidianas.

E o que sabe um adolescente sobre a surdez? A menos, claro, que tenha parentes ou sofra pessoalmente com esse problema.

Por isso mesmo o tema é uma boa oportunidade.

Nos permite descobrir, em nós mesmas, a surdez de imaginar que sabemos algo sobre o mundo da surdez: assumir que quase ninguém sofre com isso ou que muita gente sofre com isso (dependerá da nossa experiência pessoal); descobrir que nossa experiência pessoal também prejudica nossa audição da realidade dos outros e, consequentemente, da realidade “real”.

E, convenhamos, o tema também é oportuno porque o que uma pessoa que escuta pode imaginar das dificuldades que uma não escuta enfrenta no sistema de ensino? É como a pessoa privilegiada que é surda para as dificuldades que o sistema construído para os privilegiados coloca diante de negros, mulheres, LGBTs, cegos…

Opa! Mas o tema são os que não escutam. Não os que não escutam como nossos políticos que já não ouvem mais a voz popular já que têm à disposição ouvidos atentos nos corredores do poder que podem lhes garantir a sobrevivência política independente da voz das urnas, da voz pública… Poderíamos falar também das dificuldades dos mudos…

No entanto é dos ouvidos que temos que falar e, vejam vocês, eu sequer li o enunciado da redação do ENEM e já estou aqui, vários parágrafos dentro do assunto… Também estou como o surdo que se esforçou para ler os lábios ou esticou os olhos para o amigo ao lado que fazia anotações da aula e supôs que a matéria eram verbos transitivos indiretos quando na verdade era de história, sobre eleições indiretas e ditadura.

Nosso sistema de ensino está preparado para atender quem tem alguma dificuldade física? Certamente que não, ele sequer está preparado para nos guiar para longe das dificuldades cognitivas, aliás, até “periga” piorá-las ao colocar Terras Planas e pessoas feitas de barro no currículo de ciências.

O que precisamos, então, para não perder grandes mentes científicas e artísticas que lutam no sistema de ensino para avançar a despeito de não existir uma preocupação real em criar um ambiente que dê a quem ouve pouco (ou nada) as mesmas oportunidades de quem ouve tudo (e muitas vezes não entende nada ou apenas o que decidiu entender à revelia da lógica e da razão?).

O que precisamos, talvez, é aprender a ouvir. Não com a expectativa da outra pessoa parar de falar para que possamos despejar nossas ideias sem considerar o que estavam nos dizendo, mas com a atenção de quem busca construir opiniões (uma ideia, no caso, sendo como uma hipótese, muitas vezes sem qualquer conexão com fatos, e uma opinião sendo como uma teoria, construída sobre evidências e outras opiniões).

Porque, francamente, o mundo das pessoas com pouca audição ainda é muito negligenciado pela maioria de nós e somos poucos os que poderiam realmente escrever mais do que ideias sem conexão com os fatos.

Depois de escrever essa redação será minha vez de ir ao Google aprender sobre esse universo sem sons no qual, tenho certeza, sou quase cego.