Imagem: artigo da Margaret Atwood no NYT

Vamos falar do livro, certo? Ainda não assisti a série. E não terá spoilers nesse texto.

Antes de mais nada Margaret Atwood é dessas pessoas que trata o texto como arte desde a forma como constrói a narrativa até as metáforas que introduz no texto passando pela ambientação e cuidado estético e até mesmo com as palavras escolhidas. O Conto da Aia é um desses livros que nos obrigam a falar em pelo menos duas categorias de escrita, a literária e a pop.

Vamos evitar o julgamento de valor das duas, certo? O aviso é apenas para ajudar na decisão caso você pense em ler: gosta de uma leitura que flui sem surpresas na forma? Então prepare seu espírito (ou seu viés) para ler esse livro porque a história e tensa. Além disso gosta de trilhar os mistérios da linguagem em um texto que não reserva as surpresas apenas para a trama? Bem… Bem, de qualquer jeito é preciso preparar o espírito.

O Conto da Aia é uma obra tensa que nos dá uma sensação de sufoco constante, como se andássemos no meio da fumaça de um grande incêndio ou em uma distopia tão opressora que emana das páginas diante de nós e nos cerca com um véu obscuro.

Talvez isso aconteça não apenas por causa da qualidade da escrita, mas também pela perturbadora proximidade e verossimilhança da história.

A narrativa segue uma linha mais ou menos contínua no tempo ainda que sejam as memórias da protagonista (o que já nos coloca em um suspense constante ao longo da leitura: se ela está contando suas memórias, onde estará agora?) intercalada com memórias mais antigas que nos contam como o mundo chegou até aquele ponto.

E o trajeto que levou a essa distopia realmente foi perturbadoramente bem traçado pela Margaret. Se você não ficar com medo de acordar no dia seguinte e descobrir que a mesma coisa aconteceu é porque você tem sorte de não ver algumas das facetas mais obscuras do mundo que elege alguém como Trump para liderar um dos países mais influentes do mundo.

Vale lembrar que o livro foi publicado em 1985 quando o cenário global que vivemos parecia impossível.

Uma das características que mais admiro nas boas obras é serem escritas para os personagens e não para os leitores e leitoras. Quando elas não colocam o apelo comercial acima do tema como cartomantes charlatães empenhadas em nos dizer o que queremos ouvir para lhes dar dinheiro.

Isso torna nossa Aia, Moira, Luke e tantas outras pessoas que surgem na trama tão reais quanto as que conhecemos e que se envolveriam nos mesmos problemas caso uma sociedade como aquela acometesse a civilização.

Portanto não espere um tratamento nem muito delicado, nem muito cruel (algumas histórias recorrem a crueldade excessiva para nos conquistar pelo choque) o que você encontrará é uma distopia como talvez toda distopia deveria ser: assustadoramente próxima e possível.

Sobre o feminismo da obra.

É inevitável falar nisso, alias é inevitável deixar de inserir o tema em praticamente qualquer consideração sobre a nossa cultura, sociedade e economia visto que a igualdade de gêneros está no centro das transformações que precisamos passar.

Francamente, vejo uma extrapolação ao feminismo nessa obra. No sentido que vai além dele e mergulha na questão da razão versus a loucura e em como a segunda pode subjugar a primeira pelo medo. Pelo menos por algum tempo. Um tempo que podem ser décadas e arrastar muitas vidas, criar crateras obscuras em nossa história que, felizmente, servem para nos lembrar dos horrores que podemos criar quando…

Exatamente: quando o que?

O que realmente aconteceu naquela sociedade?

Vou deixar os detalhes para você descobrir lendo, mas creio que, em termos gerais, você concordará que e o mesmo que vem acontecendo com a nossa: uma disrupção entre as verdades a que estamos acostumados e novas verdades que estamos descobrindo ou construindo.

A civilização, em grande media, é a história da desconstrução e construção de verdades que quase sempre nos conduzem a mais diversidade e liberdades individuais, no entanto, em consequência, também é a história da perseguição à diversidade e aos direitos individuais.

Esse pode não ser o tema central de O Conto da Aia, mas é uma questão que está sob todas as questões de preconceito e de ódio e que também te inspirará durante a leitura.