Para quem não conhece o projeto e caiu aqui meio de paraquedas:

A Primeira Noite

Carlos está sentado numa mesa na calçada mais afastada da entrada do boteco, um desses points ao redor dos quais centenas de pessoas se acumulam como que orbitando uma estrela anã com luz pálida, mas quente surgindo na madrugada vazia. São sistemas solares separados por vários quarteirões de silêncio sepulcral até onde é possível uma cidade ser silenciosa pois o rugido dos carros passando produzem golpes de vento estranhos, antinaturais e sempre é possível escutar um tipo de murmúrio tão difuso que pode parecer vir do próprio chão.

Carlos está sozinho, seus amigos acabaram de ir e ele disse que ficaria um pouco mais observando uma moça num grupo de amigos mais à frente. Cabelos pretos bem lisos e curtos, a pele tão branca que ela parece estrangeira, os lábios se destacando vermelhos sob a luz amarelada da iluminação pública. Os três amigos lhe dão um tapinha nas costas, um soco no braço, uma piscada insinuante.

Jasmim Campello
Na foto: Jasmim Campello

Carlos não entende bem o que vê na moça, ele prefere mulheres direitas e aquela tem até uma tatuagem, mas algo nela atrai seu olhar e parece prendê-lo no chão. Ele decide simplesmente ficar observando a moça e tentando descobrir se é atração ou um tipo de curiosidade que o capturou.

“José! Fecha aí!”

Ele tinha pedido mais um chopp depois que os amigos partiram, mas agora a moça dava sinais de ir embora e, sem perceber, ele teve o impulso de pedir a conta. Que não veio a tempo então, quando a moça saiu do bar dando beijinhos e abraços apertados nos amigos, ele se aproximou do José, o garçon que sempre pegava o turno da madrugada e com quem todos conversavam e brincavam, mas sem nunca saber ou se interessar de fato pela vida do homem que já deixara a juventude para trás há décadas, e coloca em seu bolso uma nota de 20, bem mais do que o necessário para pagar a conta, e segue atrás da moça como quem simplesmente segue para sua casa próxima dali.

A calça jeans apertada, a bolsa-mochila de couro preto balançando nas costas dela e a blusa também preta de tecido flexível são quase hipnóticas para ele, um homem de quase trinta anos seguindo uma mulher pela rua, mas tanto ele quanto seus colegas faziam isso com frequência ainda que não comentassem isso uns com os outros, no máximo falavam de suas aventuras sexuais com as gurias que encontravam por uma noite na balada, que algumas vezes levavam para o motel para nunca mais ligar para elas e mal se lembrar do rosto.

Isso causava umas situações um pouco constrangedoras de vez em quando, como dar em cima de uma moça com quem eles já estiveram meses antes e sentir o rosto quente do tapa que receberam seguido de um olhar de reprovação, ou até de desprezo, e a voz suave (mulheres sempre tinham vozes suaves para eles) dizendo algo como “para você sumir de novo? Cai fora!”, mas algumas acabavam saindo com eles de novo.

Ela entrou por uma viela escura, mocinhas não deviam entrar por vielas escuras de madrugada! E se tiver ali no meio do caminho um mendigo oportunista, ou um assaltante verificando o ganho da madrugada com uma faca enfiada na calça pronto para uma outra vítima.

Ele decide segui-la. Tem medo de entrar na viela, mas… Uma mulher entrou, porque não ele? E se algo acontecesse seria mais à frente, ele teria tempo de… Decidir o que fazer. Ele achava que deixaria rolar, afinal quem mandou a moça se enfiar alí, mas também desconfiava que poderia virar um herói repentinamente, gritando com a voz forte “Cai fora, moleque! Vou te queimar filho da puta!” e isso bastaria para o meliante fugir e a moça se atirar em seus braços querendo agradecer de todas as formas por ter sido salva.

A viela cheira a mijo e cocô acumulados ao longo de eras de moradores de rua e frequentadores de bares que usam o lugar como banheiro público. No meio das sombras ele vê um bolo de panos e um movimento breve, alguém dormindo no meio daquela porcaria? Como essas pessoas chegam tão baixo? Mas ele não pensa na história da vida daquele mendigo, pensa apenas que aquilo não é mais uma pessoa.

A moça tinha passado por ali sem olhar para o lado, sem que seus passos firmes vacilassem por um segundo sequer, mas quando ele passou pelo homem (porque ele assumiu que era um homem? Poderia ser uma mulher, uma criança…) os passos param. Ele olha para frente e vê que a moça está olhando para trás, para onde ele está. A luz vem de trás dela então ele vê apenas sua silhueta. Tem a impressão de ver seus olhos brilharem, podem estar refletindo a luz da rua que vem do outro lado da viela, pode ser apenas impressão dele. Será que ela consegue vê-lo? Ele olha para trás avaliando se a luz é suficiente, mas vê apenas as sombras das paredes apertadas espremendo a viela como se fossem se fechar sobre ela.

Algo bate em seu pé e Carlos dá um salto e um grito que ele prefere considerar que foi muito másculo. No meio das sombras surge o rosto sujo de uma criança com seus 12 ou 13 anos, não dá para definir seu sexo “Tio, tem um cigarro aí?” “Não fumo!” e se vira para fugir dali. Ao olhar para frente não vê mais a moça. Ele segue sem correr para não se entregar ao susto que levou e, ao sair da viela tem tempo apenas de ver, ou ter a impressão de ter visto, a sombra da moça entrando em outra viela escura.

“Ai merda!!!” – O grito agudo vem da mesma direção, ele corre um pouco e coloca a cabeça para dentro da segunda rua estreita. Existe um tipo de sarjeta bem no meio da calçada estreita por onde escorre uma água escura. Mais uma vez ele vê a silhueta da moça. Ela é mais para cheinha, com curvas bem delineadas; atraente?

Ela está apoiando uma das mãos na parede, uma das pernas está levantada e, com a outra mão, ela verifica o tornozelo, procura ajeitar o sapato de salto alto até que decide tirá-lo. Caminha alguns passos até perceber que tem que tirar o outro também e segue descalça pela calçada imunda cercada pelas paredes opressoras dos prédios antigos que ela parece ter cortado como um tipo de erosão. As cidades sofrem erosão?

Carlos já não sabe bem porque segue a moça e nem lhe passa pela cabeça se ela pode vê-lo. O que uma moça jovem, não devia ter mais de 25 anos, faz atravessando fendas escuras de uma cidade perigosa?

É uma travessa longa, estranhamente longa. Ele mergulha mais de 100 metros entre as paredes escuras e o desagradável odor imundo até que seu alvo se vira para a parede, começa a afundar no chão e desaparece.

Ele congela. Como alguém afunda no chão? Um homem iria lá verificar! Mas nesse momento ele não é um homem. É um menino assustado vivendo em um mundo cheio de mistérios, assombrado por demônios.

Virando-se abruptamente ele escorrega, cai de joelhos na água podre que escorre pela sarjeta no meio da calçada, se levanta apoiando as mãos nas paredes oleosas e consegue correr, mas não sem antes de ter a nítida impressão de sentir uma respiração arrepiar os pelos do seu pescoço.

Escuro. Fica tudo escuro diante dele por algum tempo, ele sente apenas seus passos martelando o chão dolorosamente. Ele está correndo apavorado, tão apavorado que a visão lhe falta, ou talvez apenas a consciência dela, ele vê, dobra a esquina ao sair das profundezas escuras e segue correndo, ele apenas não tem consciência de estar vendo porque só consegue pensar na moça afundando no chão, na coisa que o está perseguindo, tem que ter alguma coisa perseguindo-o, como mais ele poderia ter tanto medo?

Quando sua visão volta ele está em uma grande avenida, a três quarteirões do pesadelo que viveu. Está sujo, ofegante, mas há um ponto de ônibus logo à frente, um oásis para ele, a salvação.

Finalmente ele tem coragem de olhar para trás e a rua está vazia. Nem mesmo carros estão passando por ela, mas são 3h da manhã e não passa mesmo viva alma na rua numa hora dessas…

As pessoas olham de lado para ele, torcem o nariz e fingem não vê-lo. O ônibus parece demorar uma eternidade para chegar. Ele entra sob o olhar neutro do motorista e do trocador, acostumados a estranhas figuras noturnas, paga e se instala no fundo do ônibus torcendo para não o perceberem mais.

Sua casa nunca lhe pareceu tão longe, o corredor até sua porta nunca foi tão escuro. Ele mal se lembra de ter tomado banho e ir dormir. Acordou no dia seguinte, um sábado, às 10h totalmente quebrado.

O Primeiro Dia

“Vamos para a praia?” A mensagem estava no grupo do WhatsApp de amigos mais próximos, aqueles com quem ele saía sempre e lhe mandavam vídeos toscos pelo grupo para que eles rissem das pessoas ridículas que existem no mundo, das velhas desdentadas até as gordas desajeitadas.

“Tô quebrado, vou dormir até segunda-feira”

Na verdade ele precisa voltar para a viela, ver como é aquilo à luz do dia, espantar seus demônios, tentar entender.

A roupa está no chão do banheiro, a calça rasgou no joelho e agora ele lembra de ter sentido arder ao tomar banho. Olhou para o joelho e viu que estava esfolado. Decidiu passar um anti-séptico, se vestiu, jogou a calça da noite anterior em um saco e atirou na lixeira do prédio.

Ele fez o caminho até a viela sem pensar. De repente ele estava ali diante daquela boca para o inferno. Mesmo de dia era um espaço escuro.

As paredes seguem sólidas, de rocha maciça dos dois lados da viela. Não há um bueiro ou nada parecido no chão, e por que diabos uma mulher se enfiaria em um bueiro ou caixa concessionária? Ele tinha certeza que foi ali, quase no final da viela, que a moça pareceu afundar no chão e desaparecer. A moça que caminhava descalça depois de quebrar o sapato na calçada irregular e talvez torcer o tornozelo. Mas será que era mesmo uma moça? Ela era… Diferente. Porque ele saiu atrás dela em uma madrugada perigosa? Poderia ser… Talvez fosse… Algum tipo de armadilha, uma isca para assaltar otários e ele foi otário. Escapou por pouco.

Jasmim Campello
Na foto: Jasmim Campello

Com passos vacilantes ele entra pela viela observando o chão, mas sua cabeça se move para todos os lados em busca de algum perigo. No meio da travessa ele acha o salto preto do sapato que a moça usava. Ele não o pega porque está na sarjeta, no meio da água escura e podre que flui por ela como um fluxo vertendo de um furúnculo necrosado. Ele está parado h? ⅔ da travessa. Na noite anterior ele estaria do lado de fora quando a mulher quebrou o salto aqui e ele a ouviu xingar.

Carlos se estica, estufa o peito, alonga as costas, ele sente que estava todo encolhido. As extremidades da travessa são retângulos de luz por onde pessoas passam rapidamente, como aqueles vídeos que mostram o fluxo do sangue nas veias de uma pessoa. Ninguém entra ali… Há ruas mais adequadas para atravessar mesmo de dia, de noite… O que ele tinha na cabeça quando seguiu a moça por ali?

Ele termina de percorrer a travessa no sentido contrário que tinha percorrido na noite anterior e se sente aliviado ao voltar para o mundo vivo e quente que circula do lado de fora. Ainda se volta para o corredor escuro e tem a impressão de ver coisas se movendo nas sombras… Podem ser somente sombras, mas não é o que ele sente.

Já é de tarde e sua barriga geme. Ele ri pensando que ela é mais assustadora do que qualquer mulher que afunda no chão e decide comer alguma coisa, acaba indo para o mesmo boteco da noite anterior, mas é claro que não adianta perguntar sobre a mulher, afinal seria outro turno, o José não estaria lá.

Carlos não presta atenção no bife, fritas, alface, cebola crua, tomate, arroz e feijão que está comendo, ele só pensa em como é ridículo ter medo de uma mulher, não importa que ela entre no chão, é uma mulher, merda. Ele não pode conviver com isso, ele percebe antes de chegar ao meio da sua refeição que terá que voltar de noite, mas ficará vigiando a viela de longe, da segurança de um outro boteco que dá vista para o ponto onde a mulher sumiu no chão, misturando-se às sombras. Ele tem tudo planejado, vai segui-la até o final agora, vai filmar, fotografar, vai fazê-la parar e explicar o que aconteceu.

O Início da Segunda Noite

Modelo: Kiara Luz
Modelo: Kiara Luz

Carlos sai para correr de tarde e depois resolve passar pela mesma região, a moça deve morar por perto, afinal estava indo a pé para algum lugar, ela mora ou tem… algo a ver com aquela região. Ele senta no bar onde pretende ficar mais à noite. São perto de cinco horas e não anoitecerá em menos de duas horas.

O fluxo de pessoas é preguiçoso, o boteco só abre porque tem umas lojas, um shopping próximo e algumas empresas na região que trabalham no sábado.

Todos ignoram o retângulo escuro da travessa, Carlos tem certeza que, se perguntar a quem passa por ali, ninguém saberá dizer que acaba de passar por uma travessa. No máximo talvez se lembrem de uma sensação de desconforto, de um vento que arrepiou os seus cabelos, mas acharão que foi um golpe repentino de ar ou um anjo que passou.

As pessoas imaginam que anjos passam quando tem sensações estranhas pois tem medo de imaginar a verdade, que o mundo não é somente aquilo que vemos que, há coisas rastejando bem nos limites da nossa visão periférica, coisas que não podem ser vistas, mas nos cercam.

Carlos pensa no medo que ele tinha de chegar em casa com o corredor todo escuro, mesmo quando seus pais estavam com ele. As frações de segundo que o sensor de movimento demorava para percebê-los e acender as luzes eram momentos de terror para o pequeno Carlos, ele tinha certeza que havia coisas respirando pesadamente na escuridão e que a luz só as revelaria para eles e seriam devorados ou estraçalhados.

O fato de nunca haver sangue nas paredes dos corredores, ou mesmo nas escadas de emergência, não queriam dizer nada, os monstros podiam limpar o sangue. O fato de ninguém comentar de vizinhos que sumiam também não significava nada, afinal eles tinham tantos vizinhos que nunca viam que vários podiam sumir sem que eles percebessem.

Carlos cresceu como a maioria de nós, aprendendo a ignorar esses medos. Como nunca nada aconteceu ele foi esquecendo do que pensava e foi ficando apenas um medo normal do escuro, todo mundo tem medo do escuro e não pensa nisso, certo? Quem tem que se preocupar com os mistérios do Universo? Que diferença faz em nossas vidas se pensamos que a escuridão é falta de luz ou se é uma coisa que afasta a luz? Saber o que é vida não serve para administradores, historiadores, físicos, programadores, médicos… Nós só temos tempo de nos aprofundar em nossas áreas de especialização para conseguirmos uma boa posição em nossos empregos, ganhar nossa vida e preencher os momentos escuros e assustadores da vida com idas ao cinema, papos com os amigos numa balada e a paquera… Ah!! A paquera! Conquistar uma mulher, deixá-la doidinha por nós, comê-las e seguir em frente para outra conquista. A vida é boa, não temos que ficar nos ocupando dos mistérios que nem os cientistas sabem explicar. É só a gente se apegar em nossa fé, afinal todo mundo tem que acreditar em alguma coisa que afaste nossos medos, certo? O resto se acerta.

Só que o mistério algumas vezes chega sorrateiramente por trás de nós… Sentimos sua mão gelada deslizando sobre nosso ombro, talvez pelos dois ombros vindo por nossas costas e se fechando lentamente ao redor do nosso pescoço pronto para nos estrangular.

Ele estava tão perdido em pensamentos que só percebeu depois. Alguém tinha entrado na travessa! Foi como quando escutamos alguém dizer alguma coisa e o som demora um eterno minuto para chegar à nossa consciência e nos viramos meio abobalhados perguntando “Como é? O que você disse?”.

Carlos não conseguiu registrar a imagem, era apenas um borrão em sua memória. Quanto tempo faz? Segundos? Minutos? Ele corre para a travessa, se detém bem na fronteira entre o dia ainda claro e a penumbra que nunca abandona o espaço estreito diante dele.

Ele se lembra do filme O Hobbit? Lá adiante nas sombras ele vê um corpo encurvado em direção ao chão, poderia ser uma fera abaixada sobre as pernas preparando-se para saltar em sua presa.

Ele entra nas sombras pois percebe que fica muito visível ali emoldurado pela luz do dia. Se encosta na parede e fica observando. A travessa é longa e a figura está no primeiro terço do lado oposto, ele terá tempo de sobra para… para fugir? Que droga! Um homem não foge de uma mulher!

Não dá para ter certeza se é ela ou não, a coisa parece vasculhar o chão caminhando abaixada até que que ele escuta um “Ah!” sussurrado, vindo meio rouco do fundo do peito e a coisa se levanta, ela tem um saco na mão e começa a caminhar na direção oposta (ainda bem). Parece a silhueta dela, da criatura noturna que ele viu na noite anterior. Então ela não existe apenas sob a luz da lua. Ele precisa segui-la.

Ele corre pela travessa prestando atenção para não escorregar novamente e sai do outro lado ainda a tempo de ver a moça uns 200 metros adiante, ele segue em passo rápido diminuindo a distância lentamente até vê-la entrar em um tipo de galeria comercial em baixo de um prédio.

Um lance de escada com menos de dez degraus desce até o espaço sob o prédio onde corredores de lojas se cruzam formando um pequeno labirinto. Há uma loja de conserto de TV, outra que vende esmaltes e outros artigos femininos, uma lanchonete de ladrilhos gastos e coloridos, já desbotados pelo tempo, porosos e pálidos, um tipo de brechó, mas que seria melhor chamar de loja de bugigangas.

Carlos vai percorrendo os corredores. Cinco ou seis, ele fica um pouco perdido e não tem certeza se passou por algum deles mais de uma vez já que tem lojas que são muito parecidas. No fundo de um dos corredores ele vê uma que conserta sapatos. O letreiro é um enorme sapato feminino de salto alto sob o qual fica pendurada a placa “Consertamos”. Ele caminha lentamente para a loja sem saber como agir, ele não pode simplesmente abordar a moça e perguntar “Porra, o que tem de errado com você?”.

É o tipo de loja onde não se entra, temos que ficar encostados no balcão enquanto o proprietário nos atende do outro lado. São apenas dois passos curtos até o balcão, mas não dá para ver a mulher, apenas alguns vislumbres quando ela coloca um pé para trás chutando o chão com a ponta da bota, ou quando se afasta um pouco revelando a nuca m pouco das costas e a bunda novamente apertada em uma calça jeans.

Carlos mal tem tempo de disfarçar quando ela se vira e sai da loja. Por sorte ele está bem na porta de um cybercafé Bem, está mais para umas bancadas de fórmica empenadas com uns computadores amarelados pelo tempo e um jovem atendente, ainda com espinhas no rosto. Provavelmente metade dos computadores não funcionam direito, mas ele não quer ver seu email, nem entrar no Secret, ele quer se esconder e para isso o lugar é o suficiente.

Quando ela passa ele olha como todo homem olha uma mulher que passa. Seu medo é que ela o reconheça, mas não há traço nenhum de reconhecimento, ela simplesmente passa olhando séria para frente como muitas mulheres fazem quando os homens as observam. “Ha! Elas gostam, mas tem que fazer esse joguinho de difíceis” pensa Carlos enquanto ela some em outro corredor.

“Olá! Oi! Aqui no balc?ão”

O velho reparador de sapatos vem se arrastando dos fundos da loja dizendo “Já vai!” com a voz rouca de quem fuma desde os 12 anos e já parece ter dado adeus aos setenta faz tempo.

“Opa! O senhor faz reparo em sapato social de cromo alemão? Tenho um que preciso usar na semana que vem, mas a sola está soltando do bico”

“A gente dá um jeito, deixa eu dar uma olhada”

“Não trouxe… Posso trazer logo mais à noite?”

“Traz só amanhã porque hoje tenho que terminar um serviço urgente”

“É o Da moça que passou aqui agora?”

“Uhum. Precisa para hoje ainda, para usar de noite… Tanta pressa… E ainda me trouxe um salto imundo.”

“Tá. Obrigado, senhor! Vou ver se trago amanhã, não vou atrapalhar seu trabalho”

Tinha algo estranho no velho, uma impaciência. É como se ele não gostasse de gente do tipo do Carlos, mas aceitasse um trabalho urgente de uma mulher qualquer.

Bem, pelo menos ele sabe que ela passará ali mais tarde. Decide montar guarda, ele precisa se livrar daquele medo, daquele fantasma. Sente que não andará mais tranquilo pela rua se não esclarecer as coisas.

A Segunda Noite – A última noite…

São quase 19h quando a moça entra na galeria. A placa da sapataria dizia “Aberto sábados até 18h”, mas alguns minutos depois ela saiu de lá já vestindo os sapatos de salto alto.

Ao entrar ela vestia um par de tênis que não combinavam nada com o vestido preto que ia apenas até metade das coxas e deixava os ombros nus à vista. Ela usava uma bolsa muito pequena para caber os tênis que devem ter ficado com o velho na sapataria. Estranho. O velho não parecia do tipo de fazer favores.

Carlos a seguiu, dessa vez por ruas normais onde outras pessoas normais passavam, poucas pois a região só explodia em movimentação de segunda a sexta com as pessoas que saiam dos numerosos prédios de escritórios ao redor.

A essa altura ela já tinha conseguido ver melhor a moça, não mais que 22 anos, olhos muito escuros e cabelos negros como a noite contrastando com a pele branca como a Lua cheia no alto do céu. Ele tinha receio que ela não fosse como tinha visto no bar na noite anterior, que sua memória o tivesse traído e ela fosse horrível, mas não. Só faltava ver o sorriso pois só a vira sorrir com os amigos na noite anterior.

Somente agora ele notou… Em nenhum momento ela pegou um celular. Quem anda pela rua sem se comunicar com os amigos pelo celular para confirmar que está indo ou simplesmente ver o que está rolando? Ela tinha olhado o celular na noite anterior com os amigos? Aliás, será que eram mesmo amigos? Não seria de esperar que um deles a acompanhasse até em casa?

Ah! Claro! Ela não tinha uma casa, ela sumia na calçada em vielas escuras e imundas. Não, é claro que aquilo foi uma ilusão! Ela não estava misteriosamente olhando para trás segundos antes, ela não tinha se enfiado por um gueto horrível, fedorento e perigoso porque é dela que as coisas devem ter medo e sim porque… Por algum outro motivo qualquer.

Mesmo com os saltos altos ela caminhava rápido e com segurança.

Ela segue um caminho totalmente diferente dessa vez, não entra em vielas, mas desaparece pelo portão de uma praça onde casais de porteiros e empregadas se encontram de noite para namorar, pelo menos é a impressão de Carlos a julgar pelas roupas pobres que eles usam e principalmente pelas sandálias de dedo rasteiras que as mulheres usam.

Ainda é cedo para ter gente na praça, mas já está escuro o suficiente para ser difícil identificar qualquer movimento entre as árvores baixas e arbustos de plantas que parecem cactos.

Carlos vai seguindo pela praça em busca da moça, ela pode ter entrado para cortar caminho até a outra rua onde há algumas boates, mas se fosse assim ela já deveria estar chegando no outro portão. Ele olha ao redor e decide buscar a sombra de uma árvore.

A lua está cheia sobre sua cabeça, já quase em seu ponto mais alto no céu. Os ruídos da cidade parecem ser devorados por alguma coisa nas fronteiras da praça pois chegam abafados como se houvesse paredes muito altas cercando a praça, mas ele ainda podia ver as pessoas caminhando do lado de fora, não mais de 300 metros dele que está mais ou menos no centro da praça retangular.

Não há brisa, mas ele escuta as folhas das árvores roçarem umas nas outras fazendo um som de mar, como ondas se espalhando sobre as copas das árvores. Ele pensa que deve ser um lugar tranquilo, devia ser um lugar tranquilo se não estivesse errada. Uma praça no meio de uma cidade é um buraco obscuro para onde convergem as coisas estranhas. Mendigos, marginais, pobres, moradores de rua… À noite são evitadas por cidadãos que fazem parte do sistema produtivo da sociedade.

O vento parecia frio demais para a época do ano. Carlos sentiu novamente a nuca se arrepiar.

Ao se virar ele depara com o rosto da moça a meio metro dele, colada atrás da árvore olhando para a lua com uma expressão terrível, como se estivesse se alimentando da sua energia obscura antes de mergulhar novamente por vielas escuras e desaparecer no chão.

Carlos grita atacando antes que fosse atacado, arremessando seu punho esquerdo contra o rosto da criatura acertando o nariz e os lábios superiores, a nuca dela se choca contra o tronco da árvore. Carlos pensa que não há ninguém para ajudá-lo, ninguém vai escutar por mais que ele grite e homens não gritam. Ele percebe que precisa se defender sozinho e instintivamente arremessa o joelho contra a barriga da moça que parece rosnar e estica a mão direita acertando o rosto de Carlos com as unhas afiadas, afiadas demais? Ele sente o calor no rosto, mas não se deixará vencer. Ele a segura pelos ombros jogando-a contra o troco e puxando várias vezes. Ele sente estalos, como se ela estivesse se transformando em alguma coisa, a noite ao redor dele parece rir com uma maldade visceral, mas ele continua se defendendo chutando a coisa sucessivas vezes enquanto soca seu rosto que lhe parece cada vez mais hediondo.

“Papai…” a palavra escapa dos lábios dela como um suspiro quase inaudível. Um choro frágil, um último fôlego antes que suas pernas percam a força e ela desabe diante de Carlos.

Ele dá dois passos atrás olhando para as próprias mãos e para a moça caída sobre os joelhos, nas pernas para trás e o corpo encostado no tronco da árvore. Uma mancha escura começa a ao formar ao redor dela. “É negro! O sangue dela é negro como a noite” Carlos repete para ele mentalmente até que as palavra não façam mais sentido, só que ele sabe que não… Que o sangue é vermelho como o dele e só parece negro pois está muito escuro. O sangue em suas mais, mais iluminadas pela lua, é bem vermelho e não é dele.

Um último suspiro parece se desprender da moça e já não dá para identificar nenhuma palavra e Carlos sabe que foi o último fôlego de vida que a abandonou para se tornar um fantasma ao redor dele para sempre, ele agora era o monstro escondido nas sombras aguardando para saltar sobre sua vítima estraçalhando-a insensível com suas garras sujas e podres.

Carlos se afasta de costas sumindo novamente nas sombras enquanto alguém entra na praça gritando para alguém “Aqui! Vem, aqui! ? uma menina!”

Carlos está mergulhando nas sombras entre as plantas que parecem cactos, elas espetam sua pele, mas ele não se importa, ele sequer sente…

“Caralho! André!! André!! É a Chris!! Chama uma ambulância! Chris! Chris!”

O homem não tem coragem de tocar nela e ferí-la ainda mais, entretanto Carlos tem certeza que ela está morta… Por suas mãos! Morta! O rosto desfigurado voltado para a sua como se ainda a contemplasse, uma menina apaixonada pela Lua, apaixonada pela vida e sem medo do mundo.

Mais tarde Carlos saberia que ela era filha do velho sapateiro, sua única família, ela cuidava dele e talvez sua última palavra tenha sido um pedido de desculpas “Papai? Vou te deixar? Perdão…”

O processo criativo

Se você leu o link lá em cima já entendeu porque essa sessão está aqui, se não leu explico de novo ;)

Esse conto foi escrito em menos de quatro horas enquanto as pessoas assistiam o que eu escrevia letra a letra pelo Google Docs (aqui está o link para o documento original).

Antes de escrever eu compartilho o processo criativo com quem está assistindo. Isso foi o que o pessoal viu:

Hoje estabeleci algumas coisas novas.

Para as pessoas saberem quanto tempo parei para pensar, quanto tempo foi necessário para cada trecho etc. vou inserir as horas de parada e retomada entre []. Assim:

[8:20] Revisando

[8:45] Retomando

Desse jeito, mesmo quem não ler ao vivo terá uma noção do fluxo da escrita.

Na semana passada escrevi por instinto, partindo de uma imagem. Cada semana tentarei usar uma tática diferente para construir o conto.

Hoje vou planejar de outra forma. Vamos ver como foram as votações porque preciso saber o tema pelo menos para decidir qual será a estratégia…

[8:22] Vendo o resultado do dos votos

[8:24] Voltei

Ficou decidido Terror, Adulto, Presente. Foram apenas 13 votos. Acho que preciso pensar num jeito de divulgar melhor, mas não quero ser chato. Vamos seguindo assim que o importante é ser divertido :-)

Na semana passada… Ah! Vou deixar o link para o post explicando o projeto lá no começo… Pronto…

Na semana passada eu achei que não ficou adulto (que foi o público alvo vencedor) então vou me esmerar mais nisso hoje.

Como vou planejar o conto dessa vez?

Terroré um bom estilo para nos fazer encarar nossos medos (duh), mas também é bom para colocar os terrores da nossa sociedade. Não querendo demonstrar que ela é doente, perversa e doentia apesar de ser possível, é claro, mostrar isso também (só não acho que essas sejam características básicas da humanidade), no entanto estou pensando em mostrar aqueles terrores que não percebemos que são terríveis… Como as pessoas que sofrem em silêncio em relações perversas com maridos ou esposas, pais e mães, tios ou tias.

Outro terror é o do preconceito. Étnico (humanos ao que parece não tem várias raças, né?), cultural e por outras características livres de ideologia pois o preconceito contra a pessoa que defende uma ideologia (como odiar ateus) tem uma natureza diferente de odiar alguém por ser canhoto, por exemplo.

Hummm… Quem poderia ser o protagonista? Um adulto, mas homem ou mulher? Mulheres estão no centro das histórias de terror há muito tempo, no começo como vítimas para serem salvas e, conforme nossa cultura em relação a elas foi mudando, foram se tornando as heroínas. Gosto muito de colocar as mulheres no centro pois ainda há muito que vencer no preconceito contra elas, mas é lugar comum…

Um casal… Seria divertido fazer sem deixar transparecer o sexo, mas acho que não consigo administrar isso em pouco mais de 3h.

Enquanto escrevo a imaginação vai jogando umas ideias… Uma pessoa em situação de risco e outra que vai percebendo isso de fora e vai entrando no universo da primeira enfrentando o perigo junto e… vencendo? Não sei ainda, isso ficará de surpresa para o final do conto.

[8:37] Pensando…

[8:38] Voltando

Tá certo! Decidi! O conto vai abordar um tema que vou deixar vocês descobrirem. Essa será minha tática: vou falar de uma questão cultural que me preocupa muito. O tema não será amizade, não será construído ao redor de uma cena ou de um clímax pré-pensado que seriam outras táticas. Vou construir uma situação que me permita falar de uma característica cultural que pode nos levar a sofrer terror, a viver com medo. Isso já define um bocado como será o final, mas só posso dizer quando acabar. Aí volto aqui e escrevo. Vou comentar também no hangout.

[8:42] Organizando as ideias antes de começar a escrever

[8:46] Pensei nos pontos vitais da trama, quem são os personagens, como o terror vai se estabelecer ao redor deles, em quem estará o foco da narrativa (será apenas um deles, mas seria interessante escrever os dois se desse tempo), mais ou menos qual será o clímax seguido pelo final.

Ajude a definir o próximo conto:

Hangout

Quando termino o conto faço um hangout comentando a experiência do dia:

Galerias

Decidi abrir espaço nesses contos para contribuições fotográficas de artistas ou modelos apresentarem visões para os personagens, cenas ou lugares.

Jasmim Campello – Atriz