Eles estão estupefatos. Sentem que sua casa, sua vida e sua intimidade foi violada. A TV em frente a eles mostra pessoas perdidas em uma ilha, mas os dois não conseguem pensar em alguém mais perdido que eles.

O casal mora num país tropical e abençoado por Deus, mas numa época que flerta com os demônios do medo, do ódio e da loucura. Eles estão sós e não entendem o significado ou as razíes dos estranhos artefatos que deixaram na porta da sua casa.

Quem poderia lhes desejar mal? Mesmo sabendo, não aceitavam.

Então toca o telefone.

O telefone toca histericamente.

A secretária não atende. Devia ser automática.

Eles se olham e ela pega o aparelho. Escuta alguns segundos. Pede para repetir e coloca no viva-voz.

– Oi! Vocês precisam falar comigo. Estou de passagem aqui em baixo, em um restaurante próximo. Eles tem uma péssima cozinha, sabe? Cheia de ratos apetitosos que me renderam um bom lanche. Seja como for preciso conversar com vocês.

Eles já tinham ouvido falar dessa estranha criatura que um amigo ainda mais estranho tinha comentado: o Gato de Botas seria um tipo de espectro, um elemental da natureza ou Deus. Fosse o que fosse somente aquele amigo o via e todos achavam que era um tipo de brincadeira ou fruto de esquizofrenia, agora a voz aguda e sibilada do outro lado não deixava dúvidas que tal criatura existia.

Quando eles abriram a porta minutos mais tarde depararam com um gato com pouco mais de um metro e meio, grandes botas pretas, um terno preto com riscas de giz e um florete na cintura. Diante do peito ele segurava um grande chapéu de mosqueteiro. Nunca foram capazes de explicar como puderam não achar a cena totalmente absurda.

– Olhem, não vou poder me demorar, sabe? Tenho um compromisso. Um enterro. Por isso estou assim de terno. Bem, como estava aqui perto e alguém tinha que lhes dar este recado eu mesmo resolvi dar esta passadinha. Mandem abraços para o meu velho amigo, tá? Faz tempo que não nos encontramos.

Fez uma pausa e olhou bem para o casal diante dele. Ambos jovens e com olhares meio catatônicos. Estava claro que os choques do dia os prepararam para aceitar a mais absurda das experiências. De outra forma o Gato não poderia se apresentar daquela forma e seria necessário utilizar algum outro artifício como de costume.

– Olha, crianças. Vocês têm um ao outro e é muito mais do que a maioria pode sonhar. Eles acham que tem alguém, mas no fundo só estão de passagem na vida um do outro e vocês não, vocês são humanos na acepção mais pura possível nesta civilização louca que seus pais criaram para vocês e agora está em suas mãos para colocar de novo no rumo.

Parou um pouco para pensar, olhou o relógio (do tipo que tem uma corrente e fica dentro de um bolso) e voltou a dizer rapidamente.

– Bem, tenho que ir… Sabe, não tem essa história de feitiçaria. O que te desejam de mal não faz mesmo muito efeito. A gente até vê alguma coisa porque se deixa impressionar, quer dizer, a gente não, vocês porque Gatos da minha espécie não são tão crédulos faz algumas eras. Bah! Estou divagando. Vim só para dizer que é assim mesmo, que ser humano numa era desumana atrai um bocado de rancor para vocês, entenderam? Vão em frente e não sejam gatinhos recêm nascidos que miam incessantemente contra as dificuldades.

Virou-se e sumiu nas sombras deixando o casal mergulhado em uma nuvem de memórias e devaneios.