O Conto

Minha morte se aproxima. Olho pela janela diante da cama e vejo o mar se estendendo pelo horizonte e a cidade espremida entre ele e o meu morro, esse em que passei a infância e grande parte da vida adulta. As memórias das vielas estreitas, das casas abraçadas umas nas outras, impossível não ter os dramas e alegrias dos vizinhos como visitas diárias. Tinha a dona Margô que mandava os filhos para longe da favela, para estudar e trabalhar longe dali com medo do crime pegar seus pequenos… Dois deles se foram antes dos meus 11 anos, 2015, lembro bem porque jamais esquecerei meus 11 anos, a idade em que me tornei adulto.

Meus olhos pesam… Tem alguém no pé da cama… Uma bela moça com a pele jambo bem corada pelo sol, uma das minhas netas, como ela se chama mesmo? Não vejo bem seu rosto através dos meus olhos pesados e a cada hora tem um parente diferente ao pé do meu leito de morte.

“Jonas! Você tem que ir para o hospital! Você pode viver muito ainda!” disse meu amigo mais antigo ainda vivo, corremos muito juntos pela favela atrás de pipas cortadas com o cerol feito com esmero… Ele quase não anda mais, se agarra à vida aceitando qualquer coisa para não deixar de existir, ou talvez seja medo de não ter agradado a Deus e ter um barraco reservado para ele no inferno, um barraco sim pois ele nega seu passado, mora em um apartamento no Largo do Machado e faz de tudo para esquecer que já foi da favela, não consegue, ninguém consegue esquecer de onde veio, mente para si mesmo na esperança dos outros acreditarem, mas ele é um bom homem, quer meu bem, entretanto prefiro respeitar o ritmo da minha vida e agora ela ensaia os acordes finais. A família aceitou, boa família, das que tem respeito pelos mais velhos e pelo direito que temos sobre nosso próprio corpo. Herança da minha mãe que criou a mim e minhas duas irmãs sozinha, sem meu pai que foi um dos muitos corpos deixados no rastro de balas perdidas e achadas por partes vitais de pessoas que apenas tentavam ir do trabalho para o abraço dos filhos, esposas, maridos. É claro que muitos filhos e esposas secretamente se aliviavam quando o patriarca bêbado e violento não voltava, mas não era nosso caso. Minha última memória com meu pai era sentado nas costas dele brincando de cavalinho quando eu não devia ter mais de oito anos… E ele cansado do dia de trabalho braçal, só muitos anos depois eu entendi isso.

Meus olhos se fecham e penso que assim deve ser a morte, eles se fecharão e deixarei de existir. Não verei o que 2087 reserva para o mundo, mas já não me preocupo com o ano seguinte há muitos anos, já não é mais a minha luta, meu destino reside no passado que posso entregar a quem quiser pegar. Os jovens se desesperam com o presente, ansiosos que são pelo futuro e ignorantes do passado, não que sejam de fato ignorantes, mas não percebem o valor do que já foi conquistado, não percebem como parecia impossível que um dia uma mulher tivesse direito de reger o próprio corpo.

Lá em 2015, quando a irmã da minha mãe, minha tia Ester, engravidou do terceiro filho porque a pílula falhou, minha mãe foi a única a apoiar a decisão de interromper a gravidez. Naqueles tempos selvagens a vida feminina valia muito menos e as opções não existiam: crime ou mais uma boca e um par de olhos para a sedução da violência diária que buscava soldados cada vez mais jovens. Ester chorava copiosamente dia após dia, queria o filho, é claro, mas pelos dois que já eram tão corajosos e até pelo bem da alma que viria ao mundo, ela estava decidida a tirar. Quase morreu, ficou duas semanas de cama, ouvi minha mãe dizer que o lugar parecia um açougue e não havia qualquer respeito. Minha mãe foi a única a defender o direito da Ester de mandar no próprio corpo, depois ela morreu, minha tia, eu já era adulto, mas ela morreu jovem, sequelas do aborto violento. Era uma das grandes causas de morte naqueles anos… De mulheres e de fetos.
Tudo escuro, os sons vão sumindo, a silhueta da minha neta é apenas uma impressão em minha retina, uma brisa fresca acaricia meu rosto enrugado, sinto um sorriso escorregar pelos lábios, penso em dizer adeus, mas a intenção desvanece entre inspirar e expirar…

– Joga a chave, Matias!

Quem diria… Será que existe mesmo vida após a morte e tem um anjo com o mesmo nome do meu bisneto no céu? Mas jogando chaves? Volto a sentir a brisa fresca, outros sons crescem em meus ouvidos, os tão familiares e agradáveis da favela, uma lágrima escorre dos meus olhos, não é medo, não é alívio por não ter morrido, estou pronto. É a luz que me faz lacrimejar, o sol deve estar se pondo e atravessando a janela ao lado da cama que me abriga há já uma semana a não ser que eu tenha perdido a noção do tempo, a menos que o tempo tenha perdido a noção de mim. Sons dentro da casa, panelas na cozinha no andar logo abaixo. Meus olhos se abrem e lá estou eu no pé da cama, na poltrona no pé da cama, segurando um livro e passando os olhos gulosamente por ele, engraçado, nunca fui de ler, por que estou ali lendo? E por que tenho onze anos novamente? Também não lembro de ter ficado sentado ao pé da cama de um velho moribundo, muito menos aos 11 anos.

– O que você está fazendo aí garoto? – Pergunto

– Oi Vô Jonas! O senhor quer água? Tem aqui! Ah! Tô lendo uma história triste. Acontece no futuro!

O futuro é agora, o mundo está muito diferente dos meus onze anos… Os prédios não mudaram tanto, as pessoas não mudaram tanto, mas houve conquistas e tem coisas que já não entendo mais como funcionam, que parecem mágica, talvez eu esteja lendo a história triste de como vou morrer, mas essa não é uma história triste, estou feliz com a placidez da minha partida. A sopa que me servem é ótima, alguém me faz fisioterapia três vezes por dia. Tirando o fato de estar paralisado numa cama há uma semana a aproximação da morte não me deixou desconfortável.

Levanto um pouco a cabeça e dou uma boa olhada no garoto que me chamou de vô Jonas. Certamente sou eu, o mesmo brilho nos olhos conhecendo a maturidade pela primeira vez depois de onze anos no mundo, o que posso contar para ele que seja útil nos próximos setenta e não estrague as surpresas? O que fiz de errado? O que deixei de fazer? Não que agora me importe, já não há mais tempo então estou livre dessas obrigações mundanas, mas ele ainda tem muito à frente.

– Só um gole, garoto, só um gole, essa barriga velha já não se anima com os excessos do passado, beba um pouco também, água é mais importante do que a maioria pensa, sempre buscando sensações especiais, sabores, brilhos… Buscam tanto que não sentem mais os próprios pensamentos… Lembre-se disso.

– Vou lembrar, vô Jonas! Toma, bebe um gole… Tem um copo para mim e estou com sede mesmo! Já vou beber.

Eu não devia estar aqui cuidando de um velho moribundo, mesmo que esse velho seja eu mesmo e esse seja o respeito mais básico de todos, o respeito por nós mesmos. Muitas vezes falhei nisso. Me desrespeitei… Me embriaguei, me arrisquei para me exibir, minha mãe teve que me tirar puxado pela orelha da casa do Maurício Playboy, cinco anos mais velho que eu e envolvido com tudo que havia de errado, mas ele tinha celular, roupas chiques, dinheiro. Achei que isso era importante para um jovem adulto de onze anos, que o nosso futuro depende da nossa imagem e valia o risco. O Playboy respeitou minha mãe, todo mundo respeitava a minha mãe, ela tinha esse poder, como uma super-heroína. Uma vez um dono do morro foi morrer aos pés dela, cravado de balas, ela o tinha visto soltar pipa e sonhar com ser político, mas ele desistiu, sonhos tolos de criança ele dizia quando desfilava imponente com suas armas e capangas à volta, um alto funcionário do tráfico de drogas com chefes que ele nunca soube quem eram. Ele foi morrer aos pés da minha mãe pedindo para cuidar do filho dele que tinha apenas dois anos… Marcos. Ficou sendo quase um filho para mim pois eu já contava com 16 anos e era o homem da casa. Marcos se tornou advogado, constituiu família, deixou a favela com medo dela tomar conta dele, um homem culto e inteligente, mas o trauma o confundiu, a favela não é boa ou má, é a nossa memória dela que define o que será para nós, mas ele foi feliz até morrer de uma infecção urinária fulminante.
Ali está o jovem Jonas em pé ao lado da cama, o livro na mesa de cabeceira, um largo sorriso no rosto.

– Você não devia estar no colégio garoto? O que você vai aprender lá será de pouca valia, mas as amizades que fazemos na escola transformam o mundo em que vamos viver, por isso minha mãe nos colocou naquele colégio público fora da favela, para podermos conhecer mais gente.

O jovem eu me olha curioso, talvez esteja imaginando como podemos estar nos encontrando nesse quarto iluminado pelo sol poente se setenta anos nos separam um do outro, mas espero que esteja pensando na importância do que eu lhe disse. Foi ajudando colegas do colégio e sendo ajudado por eles que construí minha vida. Foi ao reencontrar a Isabela, muitos anos depois do colégio, que descobri o amor da minha vida, e ela estava envolvida com o cara que ia acabar com a dela se não tivesse me encontrado novamente, o dono da loja onde ela trabalhava e que era simplesmente um homem mau, obcecado por poder, mas na época, e ainda hoje na verdade, as pessoas achavam que isso era sinal de força. Anos depois ele foi preso por ter matado a esposa que se recusava a obedecer suas ordens cada vez mais absurdas, foi o que nos contou o Zé, que continuou trabalhando na loja enquanto eu e a Isabela começamos nosso próprio pequeno negócio de artesanato. Eu desenhando, ela administrando as finanças, Isabela sempre foi aplicada nos estudos enquanto eu só desenhava.

– Você pode me fazer um desenho, garoto? Desse por do sol, quem sabe?

O pequeno Jonas sorri, pega um papel e uma caneta, como ele desenha mal! Será que eu era mesmo ruim assim e só depois fui aprendendo a desenhar? Melhor pedir vários desenhos para esse pequeno eu do passado para me levar a praticar, tomar gosto pela coisa. Ele também pode não ser eu e sim meu bisneto Matias, quem sabe? Quantas vezes cruzei nas ruas com rostos conhecidos que tinha certeza que eram personagens do meu passado e por rostos desconhecidos que me faziam parar perguntando “Jonas? Como vai a Isabela? Lembra de mim?” e lá ia eu tentar lembrar… Algumas vezes lembrava, outras não. É curioso como temos valores diferentes uns para os outros, como algo pequeno que nem lembramos ter feito toca profundamente a vida de outro para melhor ou para pior. Viviane era uma moça que gostava do meu melhor amigo, esqueci totalmente dela, é claro, mas quando tínhamos uns dezoito anos eu devo ter dito com muita veemência para ela se afastar do meu amigo. Nos reencontramos décadas mais tarde, ela com um filho de seis anos colado nela indo ao cinema e ela me perguntou do meu amigo que ela gostava, mas de quem se afastou por recomendação minha, disse que teve ódio de mim na época e por isso sumiu. Eu sequer lembrava que ela tinha existido, mas sabia bem que meu bom e velho amigo era, foi e continuou sendo um péssimo homem para as mulheres, não as respeitava, estava sozinho, namorando uma ou outra, um garotão em corpo de tiozão foi como o descrevi. Ela contou que tinha conhecido seu marido há dez anos, que era um homem dedicado ao trabalho e à família, que não eram torridamente apaixonados, mas eram felizes, não estavam sozinhos pois tinham um ao outro.

– Garoto, você tem um melhor amigo? Ouça bem… Nunca falte com a verdade. Se o seu bom amigo for um mau namorado não esconda isso da menina, mesmo que você mal a conheça. A fidelidade da amizade não pode violar o respeito aos outros.

O garoto está compenetrado no desenho, vira o rosto para mim surpreso como quem diz “nossa! Nunca vou namorar ninguém! Nem meus amigos”.

Ah! Os onze anos… Mas foi quando me tornei adulto, me apaixonei pela primeira vez, senti a primeira perda, descobri uma vocação e decidi como seria minha vida. Rumos que mudei muitas vezes, coisas que experimentei muitas vezes, mas aos onze anos foi a primeira vez que senti como adulto, ainda não aconteceu com o Jonas jovem, será que devo avisar a mim mesmo o que me espera?

Uma música enche o quarto vindo de algum lugar, se for o anúncio de seres celestiais vindo me pegar então o gosto musical no paraíso é muito estranho, eu esperava algo diferente.

– Alô? É, sou eu mesmo, Matias… Quem te deu meu número Mariana? Minha mãe? Não… Não… É q… Tá… A gente faz o trabalho junto… Só posso daqui a duas horas.

Mariana… Será a Isabela do Matias? As histórias se repetem mesmo quando separadas por séculos, que dirá meros setenta anos? Meu segundo filho perdeu sua esposa da mesma forma que meu pai foi tomado da minha família, ela deixou dois filhos assim como meu pai, ele adotou uma órfã do tráfico assim como a minha mãe, mas ela se tornou engenheira elétrica, inventou um jeito novo de transformar a luz do sol em eletricidade. Quando eu tinha onze, até mesmo aos vinte, nos surpreendíamos quando alguém da favela conseguia emprego de branco, até havia brancos na favela que tinham que ocupar empregos de preto porque eram favelados, ou mentiam onde moravam para ter empregos melhores. Hoje já não é mais tão estranho, mas não sei quando foi que mudou. É como o rosto que vejo ao olhar para o espelho, quando foi que ele deixou de ser o rosto do menino diante de mim desenhando e passou a ser o rosto de um velho? O mundo muda sem percebermos…

O garoto me mostra o desenho, feito à caneta, até que não está tão ruim, poderia ser tanto o desenho da paisagem de hoje quanto a de setenta anos atrás já que os moinhos de energia eólica não estão desenhados, talvez para me agradar pois ele sabe que eles não existiam quando eu era uma criança ali mesmo naquela casa. Eu não morava na favela quando construíram os moinhos, as grandes pás brancas girando lentamente produzindo alguma energia extra para a cidade, eles são comuns agora ao lado de negros painéis fotovoltaicos, eu não sabia falar fotovoltaico aos onze anos, nem imaginava que existiam, agora todos eles tem um pouco da minha família já que a maioria é do tipo inventado por minha neta adotiva, será que o jovem Jonas que pendura o desenho na frente do meu nariz sabe como ele será importante no futuro? Um jovem de 2087 provavelmente sabe, mas eu não sabia aos onze anos, sonhava com um emprego que desse para ter o mínimo conforto, não me atrevia a sonhar mais do que isso, a não ser em brincadeiras infantis quando imaginávamos ser astronautas, heróis, cientistas e riamos da nossa infantilidade nos sentindo muito adultos.

Tinha um primo de vinte anos que estava na faculdade, era um dos poucos, ele me levava ao cinema de vez em quando e conversava comigo. Eu achava que ele era muito especial por estar na faculdade, foi aos onze anos que eu o encontrei com os olhos pesados, os ombros caídos sentado no bar perto das ruínas de uma velha casa que foi cercada pelas casas do morro. Pedi a ele para ir ao cinema comigo, acho que ele secou o rosto, tinha chorado? Adultos choram? Para mim ele era adulto. Ele foi comigo ao cinema, riu, contou piadas, me pagou um lanche, não me levou até em casa, ligou para a minha mãe e pediu para me pegar perto do shopping onde estávamos, foi a última vez que o vi em muitos anos. Na mesma tarde ele foi preso, um amigo de infância dele estava envolvido no tráfico, meu primo sabia, mas nossas casas abraçadas na comunidade tornavam impossível não ser parte de tudo que acontece de bom ou ruim em nossa comunidade. Meu primo era inocente, mas como provar? Ele terminou a faculdade na prisão, mas saiu de lá com quase trinta anos, sem experiência no mercado de trabalho, sem futuro… Viveu mais de setenta anos, mas era uma figura triste que sabia que não tinha ido tão longe quanto poderia se não tivesse ido para a prisão, resistiu ao mal, nunca se envolveu com o crime. Esse foi o gatilho da minha maturidade, você deve estar pensando, não é? Pois não foi, nem a falta do meu primo mais legal, nem a morte de um sonho por injustiça, eu lembro bem do dia que percebi que estava entrando na vida adulta, que não era mais uma criancinha.

Olhei pela janela do quarto da minha mãe sem saber que estaria deitado ali mesmo em 70 anos esperando a morte chegar. Olhei a mesma paisagem que hoje me chama para o epílogo da minha vida e vi o prólogo da minha história, um garoto da favela com um horizonte infinito diante dos meus passos curtos, mas velozes, o mundo estava lá fora e eu fazia parte dele. O sol também se punha naquela tarde quente, tão diferente de hoje que me premia com uma brisa fresca e suave que acaricia meu rosto e sopra meus cabelos afinados pela idade. “Não posso ser o bebê da minha mãe para sempre” eu pensei e, mais importante, eu vi o mundo por outros olhos, por lentes mais sérias, enxerguei os milhões de vidas no pequeno espaço que eu podia observar, não estava certo ser apenas uma criança fazendo de conta, num mundo de fantasia. Naquele dia papai Noel morreu, eu sabia desde os quatro anos que ele não existia, mas achava que para os ricos ele era real, tinha colegas cujos pais tinham um pouco mais de dinheiro que ainda acreditavam nele aos onze anos pois os presentes apareciam durante a noite, mas não na minha casa, minha mãe fazia questão dos filhos saberem ser gratos aos parentes e amigos que eram os verdadeiros “papais noéis” que faziam um esforço extra perto do natal para que os próprios filhos e os dos amigos e parentes pudessem ter um pouco de sonho enquanto fosse possível. Minha mãe dizia que as coisas invisíveis não esperam por nossa gratidão, mas que as pessoas em nossas vidas a merecem mesmo quando não fizeram esforço pois pessoas ingratas são pessoas sem alma.

Nesse dia, no entanto, eu fui grato a algo invisível, fui grato a existir, aos onze anos foi a primeira vez que percebi que eu existia, não que antes eu não soubesse, mas não pensava nisso, no significado de existir, nas pessoas todas que não existiriam ou que deixavam de existir repentinamente e contra a vontade, talvez tenha sido ali que nasceu a paz que agora me preenche enquanto me despeço da existência. Seguro o desenho que o Jonas que me visita do passado fez com suas mal traçadas linhas, estico a mão e ele me entrega a caneta. Me ajeito na cama, preocupado ele me ajuda, lembro do cheiro de velho. Eu não gostava de cheiro de velho e sempre tinha medo que eles percebessem quando me oferecia para ajudar a levar suas compras até em casa e vacilava sempre na hora de atravessar o portal e adentrar os domínios dos seus barracos-castelos impregnados daqueles cheiros característicos de velhos… Agora eu sou o velho e olho desconfiado para o jovem eu tentando perceber se ele está incomodado, não parece…

Espero que todos os velhos que conheci também não tenham percebido nada. Ele me entrega o seu livro para servir de apoio e começo a retocar o desenho, dando profundidade, acrescentando os moinhos de vento, textura nas paredes… Meus traços já não são os mesmos que garantiram tantos elogios quando eu projetava obras de artesanato, mas ainda fazem os olhos do garoto ao meu lado se arregalarem, tolice, me falta firmeza, me falta conteúdo pois já não olho mais para o futuro, ele não me pertence mais. Sinto como se estivesse dormindo novamente, o quarto se escurece e apenas o desenho fica sob o foco luminoso da minha atenção, os traços passam a fluir mais fáceis, assumem as cores que imagino, eu já estava com mais de quarenta anos quando fui descoberto como artista, alguém que achou os modelos de artesanato que joguei no lixo. Não ganhei muito dinheiro com isso, mas foi o meu segundo despertar depois dos onze anos, percebi que dava de volta ao mundo um pouco do que ele havia me dado, era uma forma de gratidão a todos que tinham feito parte da minha vida positiva ou negativamente… Transformando as experiências que vivi em desenhos representando dimensões invisíveis para os olhos desatentos de quem vai de passagem pela vida. Ainda tenho exposições ativas em algum lugar no mundo, mas agora só tenho olhos para o desenho diante de mim, da vista da minha favela, da cidade que primeiro recebeu meus passos, onde cada esquina guarda uma memória, uma pessoa, um sentimento, uma ideia. Gaivotas começam a voar no desenho, quem sabe é um desses papéis modernos que tem vida própria? Decido levantar, pouso o papel no criado-mudo ao lado da cama, caminho até a janela, há tempos não é tão agradável caminhar, não sinto o peso do corpo sobre os pés, lá embaixo crianças brincam correndo, soltando suas pipas, dá para ver a pracinha onde um grupo joga bola, mães passam por perto com bebês no colo, outro grupo de crianças sobe correndo com uniformes do colégio, tantas histórias pela frente. Me viro buscando o jovem Jonas e ali está o pequeno Matias falando alguma coisa com o velho Jonas deitado em seu último leito, olho para mim mesmo, meus pés descalços e sujos de criança que passou a tarde jogando bola na pracinha, tomo um último fôlego, caminho até a cama colocando a mão sobre meu ombro cansado, aproximo a boca do meu ouvido e sussurro “pede para ele chamar a mãe dele”.

– Tá vô Jonas! Já volto, tá? Fica aí! Manhê!!! Vô Jonas quer falar com você!
Um sorriso sobre meu rosto marcado pelo tempo, seguro firme a mão do pequeno Jonas que sorri para mim enquanto o jovem Matias segue pelo corredor atrás da mãe, nós dois fechamos nossos olhos e mergulhamos em nossos desenhos e nas memórias das nossas histórias afundando nas cores que se misturam até que deixamos de existir…

Observações

Clique aqui para saber o que é o projeto Um Sábado, um conto.

Essa semana li a tradução do que Oliver Sacks escreveu sobre estar morrendo: http://www.papodehomem.com.br/oliver-sacks-diante-da-morte

Além disso penso na morte pelo menos uma vez por semana e achei que devia compartilhar uma das visões que tenho sobre isso.

Eu gosto de escrever desse jeito mais errante, como se os pensamentos se misturassem na cabeça. É uma violação, até certo ponto, da escrita que se diferencia do pensamento por ser linear, no entanto ainda tem que existir uma espinha dorsal linear para facilitar o entendimento do que está acontecendo.

Como disse no processo criativo (mais abaixo), o Antônio Torres é um mestre nessa forma de narrativa.

Vlog

O Processo Criativo

Continuo com a ideia da distopia em que as mulheres não podem ter filhos porque a sociedade acha o corpo magro lindo e que não deve ser enfeiado pela gravidez, mas ainda não estou satisfeito com as ideias que tive para desenvolver a história.

Outra história em que estou pensando é de um menino na favela, realista, só um pouco da rotina de uma criança normal que vive em uma favela no Rio de Janeiro tendo que lidar com preconceitos, sonhos confusos entre a pressão contra as suas possibilidades de ser algo como médico ou engenheiro etc.

Também pensei em um romance ou suspense com fantasia porque sempre acabo descambando para o terror então pensei em fazer algo com fadas (eu sei que fadas sabem ser terríveis, mas essas seriam purinhas e ingênuas) em uma realidade em que os dois mundos se misturam.

Pensei também em algo como a fantasia/scifi do oriente médio com jins e toda uma estética diferente que eu conheço um pouco por já ter lido HWJN, mas tenho receio de ser injusto com a cultura deles por conhecer muito pouco e, além disso, estou mais inclinado a fazer um conto mais realista.
Cara… Vai ser o guri na favela. Também conhecemos pouco desse universo, mas é o que está dando mais vontade de escrever, já veio até uma cena em que ele, com 11 anos, tem que cuidar da casa porque a mãe precisa trabalhar. Ele não tem pai, pode ter morrido por bala perdida.

Qual é a tensão da história? Um mistério talvez? Humm… Pode ser narrado por ele mesmo mais velho… No leito de morte? Ele está contando a história para um neto? Não bisneto… Então é uma história para jovens… O bisneto ainda é pobre? Não… Ele mora na favela, mas não é mais tão pobre apesar de ainda sofrer com preconceitos como o bisavô sofreu.

Onde eles estão no tempo? Ele poderia estar morrendo no presente, mas vou preferir que a história contada seja no presente e o narrador esteja… em 2086 com 81 anos. Morrendo até jovem, mas é que a vida algumas vezes simplesmente se extingue.

Ainda não sei qual é o problema a ser resolvido. É uma missão que o velho dará ao bisneto? É uma revelação que será útil para o garoto? Vou comer alguma coisa enquanto penso.

Um jeito de descobrir o que está acontecendo é deixar a história acontecer em nossa imaginação antes de colocá-la no papel… Quer dizer, antes de escrevê-la!

Nosso narrador está no leito de morte em casa, na favela, com a linda vista do mar e da cidade que se estende mais abaixo, ele gosta dessa visão. A família deixa alguém sempre com ele e agora é o bisneto que está sentado numa poltrona ao pé da cama lendo um livro. Ele o vê e, por um instante, acha que é ele mesmo na infância que decidiu visitá-lo em um tipo de delírio pré-morte. Um “fantasma dos natais passados”. Humm… Ele fala com o garoto como se falasse com ele mesmo! Gostei disso. Ele sabe que o garoto é o bisneto, quer dizer, uma parte da mente dele sabe, outra decide que essa é uma boa oportunidade para conversar com seu “eu passado” e se entrega ao devaneio.

Isso me dá espaço para me inspirar no estilo de Antônio Torres que é um dos meus escritores preferidos e escreve o que os arrogantes chamam de alta literatura, mas que talvez seja melhor definido como literatura lapidada pois a própria forma de escrever, além da história, já faz vibrarem as cordas da nossa imaginação, inspiração e emoções.

É um desafio, ainda mais tendo apenas até as 13h para escrever, ou seja, 3h43′ pois são [9h17]. Melhor começar logo e ver o que a história me traz. Vou contar que ela me apresentará a tensão dramática… sozinha… enquanto… Me lembrei de Carta ao Bispo, de Antônio Torres mesmo! Será que nosso narrador morre até o final do conto? Ele está mesmo no leito de morte? O que o levou até ali? O que ele acabará destacando da sua vida como os momentos, ideias ou aprendizados mais importantes? Pode ser por aí… Vou acreditar nas artimanhas do inconsciente e começar a escrever.

Vamos descobrir juntos o que essa história nos reserva!

[9h20]

Imagem: Cláudio Braga