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O Conto

– Jessé, sente aí e prepare-se para encarar o calor do Hell de Janeiro. Vou te mandar para fazer uma matéria lá na Barra da Tijuca.

Jessé é jornalista há dez anos, sete deles nesse mesmo jornal, pouco expressivo, mas estável por fazer parte de um grande grupo de mídia. O chefe é um sacana, mas é boa praça, eles já beberam juntos muitas vezes. É aquele tipo de redação onde a hierarquia não é pesada ainda que esteja presente. Jessé não fica irritado com a designação, pode até ser bom esticar as pernas.

– Beleza, vou lá derreter então, Fábio. Fazer o quê? Qual é a pauta? Segregação social de novo? Pegar o pessoal reclamando da invasão de pobres na praia deles? Ou o contrário, quer que eu me enfie no meio do arrastão para perguntar ao povão como é se sentir discriminado pelos moradores locais?

– Bem mais interessante! Agora vamos virar um tabloide sensacionalista, bem, pelo menos a sua matéria vai ser uma experiência nesse sentido. As pessoas estão gostando dessas tolices de sobrenatural de novo, os cinemas estão cheios de filmes de Bíblia, já viu? Temos que ver se esse grupo também lê nosso jornal e esse será um bom teste.

– E como eu vou fazer para achar discos voadores ou demônios voando pela Barra da Tijuca? Eu até acredito em Deus e tudo mais, só que, na real, nós dois sabemos que nada estranho acontece de verdade.

– Por isso quero você lá, sei que não vai fazer uma matéria tendenciosa, Jessé, mas, veja bem, fiquei sabendo de fonte interna que tem umas coisas esquisitas acontecendo na altura daquele condomínio ao lado do condomínio da Marisa, da contabilidade, você sabe, né?

Marisa e Jessé tinham se embolado em um caso sórdido havia uns três anos, agora ela estava casada e já com um filho de um ano… Ele ainda tinha saudades do jeito que ela se agarra aos prazeres da vida mergulhando profundamente neles.

– Foi ela que deu essas informações? Não é do jeito dela ver coisas sobrenaturais?

– Não. Foi a polícia… Você talvez esbarre por lá com um investigador que é meu primo. Ninguém pode saber que ele abriu o bico para mim, ok? Faz de conta que você está fazendo uma dessas matérias aí que você falou, mas o caso é que tem gente sumindo por lá, tem uma quantidade estranha de pessoas com deformações físicas e já acharam três corpos que morreram estranhamente. Não tenho os detalhes, só sei que foi isso que deu um alerta para a polícia.

– Pera aí, Fábio! Tu tá me mandando para ver um lance que tem gente morrendo misteriosamente? Qual é?

– Desde quando você virou franguinho? As circunstâncias estranhas devem ser “comeu peixe contaminado da droga do rio cheio de metais pesados despejados pelo esgoto mal tratado e emissões de fábricas” ou coisa assim. A polícia vai investigar, pegar a propina de alguém e caso encerrado.

– Hummm… Sei… Num sei não, viu? Eu não tenho o menor interesse em ganhar um Pulitzer póstumo. Se eu não entrar em contato de hora em hora faça o favor de mandar um carro funerário me pegar.

Os dois caem na gargalhada, aquela de quem decide descartar seus piores temores reconhecendo que são fantasiosos ou infantis.


Jessé vai de ônibus e salta mais ou menos a um quilômetro do condomínio onde os tipos estranhos aparecem. Ele não sabe onde os corpos foram achados, mas aposta que foi em algum dos terrenos baldios da região, ou talvez mais para os lados da vila do Pan, onde as ruas afundam mais de três metros em apenas mais um escândalo de obras públicas. Tem até um jacaré por lá que poderia ter dado cabo de alguns corpos…

O plano é ir andando e sentindo o ambiente, conversando com as figuras que achar no caminho.

Barra da Tijuca… O bairro das numerações estranhas… Na Av. das Américas os números vão e vem, de 1000 volta para 700 e depois pula para 1400, ou coisa assim, Jessé nunca se lembra.

Poucas pessoas caminham entre os condomínios, tudo se faz de carro ou de ônibus, mas, aqui ou ali, ele encontra um mendigo, três homens lançando um sarrafo atrás de peixes nas margens do lago ou de um rio que mais parece um córrego.

Ele pensa como seria fácil puxar alguém para dentro do terreno baldio ali e ter uma hora de tranquilidade para fazer o que quiser. Dificilmente alguém veria e se visse e avisasse à polícia certamente ela não atenderia pois há coisas muito mais sérias acontecendo pela cidade além de… Bom, a polícia já anda preocupada demais com os escândalos envolvendo suas próprias atividades.

– Opa, companheiro! – O homem que vem em direção a Jessé se apoia em muletas, as roupas esfarrapadas, os pés descalços encardidos e com a pele ressecada – Sou jornalista e estou fazendo uma matéria sobre como está a vida nas ruas por aqui.

O mendigo segue em frente sem olhar para ele, parece imerso em um mundo longe dali.

– Senhor? Me chamo Jessé, sou jornalista, posso falar um minuto? Eu te acompanho, o senhor nem precisa parar.

– Jessé… O presente de Deus… Isso aqui não é terra para gente de Deus, menino.

Menino? Está certo que aos 35 anos ainda temos cara de novinhos, mas menino é um pouco de exagero, mas se o mendigo quer fazer o velho sábio tudo bem por ele.

– Principalmente com esse calor… Não tá para ninguém, né? O senhor costuma ficar por aqui?

– Tô picando a mula garoto, antes do sol cair estarei bem longe daqui. Prefiro o cassetete da polícia na praça Mauá do que esse lugar abandonado por Deus. Ando devagar, mas ando sempre.

– Desculpe, senhor, mas aconteceu alguma coisa? Olha, toma dez reais, para o ônibus e um pouco d’água, tá muito quente.

O velho para por alguns segundos, puxa a nota, coloca num bolso puído, mas não rasgado, seus olhos fundos emoldurados por rugas que formam vales no rosto castigado pelo sol e pela vida encaram Jessé com um tipo de fúria.

– Tu não quer saber… Tu não quer saber… Não vai acreditar em mim, então segue em frente até o portão verde e grande, vai ter algum infeliz jogado no chão perto dele. É lá que você precisa entrar, é com as pessoas de lá que você precisa conversar.

Depois o homem se vira e segue seu caminho.

Jessé olha ao redor para ver se é seguro, saca o celular e manda um WhatsApp para seu chefe: “Tudo bem até aqui. Encontrei mendigo velho que disse que as pessoas do condomínio são estranhas, tô indo para lá”.

O resto da caminhada é exaustivo, como aquele velho pretende atravessar boa parte da Barra, São Conrado, Lagoa, Humaitá Até chegar ao centro? A vida desses vaga-mundos ainda dá assunto para muitos artigos… Vaga-mundo… Foi num livro que Jessé viu esse termo pela primeira e última vez, talvez nem exista no dicionário.

“Cheguei no condomínio, Fábio. Quanto mais perto dele, mais mendigos a gente encontra. Alguém aqui deve dar comida para eles. Vou ver”.

Jessé só decide abordar alguém novamente ao encontrar um grupo de três ou quatro. As pessoas tendem a falar mais em grupo tanto por se sentirem seguras, quanto para se mostrar para os outros.

A uns 200 metros do condomínio ele vê uns quatro homens jovens no canteiro central, certamente dividindo o fruto dos ganhos ilícitos do dia, ninguém incomoda quem está no canteiro central pois os carros passam ligeiros ao redor, mas é então que Jessê percebe que um deles não tem uma perna, o outro não tem um braço, o terceiro não parece ter orelhas e o quarto… O que tem de estranho nos olhos dele? Jessé decide arriscar. Duplamente: Ser assaltado e ser atropelado. Atravessa correndo a via expressa e vem se aproximando cautelosamente dos homens chamando a atenção deles ainda a uns 15 metros para ter condições de fugir ainda que apenas o sem orelhas possa ser uma ameaça real para ele.

– Olá! Tô de boa!! Tô de boa! Sou jornalista! Só quero perguntar sobre o quê tá rolando por aqui, valeu?

Os quatro se apertam uns contra os outros, esse definitivamente não é o comportamento comum desse pessoal… Aliás, qual é o comportamento comum desse pessoal? Jessé nunca tinha entrevistado moradores de rua, nunca tinha prestado atenção a eles por mais de cinco segundos. Levanta os braços, para a uns oito metros do grupo e começa a falar.

– Vim caminhando e notei que tem mais gente aqui do que na Cinelândia na hora de fechar os restaurantes – Isso ele tinha percebido: que muitos moradores de rua pegam os restos dos restaurantes ou supermercados – e com esse calor da porra!

Os quatro apenas o encaram. O sem braço apoia o sem perna, o sem orelhas parece ser seus lábios e o quarto volta para ele um par de olhos vermelhos, muito espremidos, a luz deve ser muito desagradável para ele.

– Olha, tenho quarenta pratas aqui – e tira do bolso cinco notas de dez reais previamente separadas para não encher os olhos de ninguém – Eu só queria perguntar se vocês sabem de alguma coisa esquisita rolando nessa região.

– Olha moço… – A voz é de uma beleza e suavidade que hipnotizam Jessé, ele nunca imaginou que uma figura sem orelhas teria uma voz tão límpida e clara – Trouxeram a gente para cá. Uma Kombi passava escolhendo só quem tinha algum problema físico e trazia para cá. A gente fica porque a Kombi também passa com comida e água duas vezes por dia. Só que… – O de olhos vermelhos e apertados o cutuca com força – Dane-se Samuel, vou falar, alguém tem que falar. É que uma vez por mês a Kombi trás mais gente, mas o número de pessoas não passa de uns trinta. A gente fica junto para não sumir. E tem de noite… Os sonhos… O Samuel vê anjos, eu juro que sou arrastado por gente do espaço para uma sala toda branca, o “bracinho” não sonha nada, mas outro dia acordou longe da gente e… Mostra para ele…

O homem sem um dos braços mostra um pequeno cotoco saindo do vazio onde devia ter um braço, a pele parece estar sendo esticada como se o cotoco estivesse forçando caminho. Ou podia ser um grande furúnculo crescendo.

– Vocá está dizendo que está crescendo um braço nele?

– É isso mesmo, ele diz que é besteira, que isso sempre foi assim, que é só porque ele dormiu de mal jeito, mas tem a minha voz, os olhos dele… A gente mudou depois que veio para cá. Eu acho que é coisa do espaço.

– E aquele condomínio ali em frente? Tem a ver com isso? – Jessé costuma ser mais discreto, mas realmente tem visto que os mendigos no caminho não são como os do restante da cidade.

– Duvido moço, acho que o lance é o mangue que fica lá para trás. Teve um maluco que falou que encontrou A Pessoa lá. Ele disse que era “A Pessoa” porque não dava para saber se era homem ou mulher… Tenho certeza que era um ser de Marte! Mas ele começou a contar coisas, falar do caminho que A Pessoa tomou, descrever o rosto dela e depois ele sumiu. Ouvi dizer que apareceu no mangue sem os pulmões. Morto, mas sem nenhum corte.

Jessé decide que tem que entrar no condomínio, seus instintos dizem que o primeiro mendigo sabia de alguma coisa… Quem sabe não será o próximo corpo a ser achado?

“Falei com mais mendigos. Vc vai achar que estou maluco, mas parece que estão fazendo experiências neles. Coisas para mudar a voz, mudar os olhos, fazer membros perdidos crescerem. Eles são trazidos para cá por uma Kombi e alimentados por ela. Vou entrar no condomínio que a Marisa falou.”

Ele espera o primeiro “v” aparecer para ter certeza que a mensagem foi para os servidores do WhatsApp. As outras já estão com os dois “vv” azuis indicando que o Fábio já leu.


Jessé aperta o botão para chamar o porteiro. Um led verde acende pouco acima indicando que ali tem uma câmera em funcionamento.

– O que o senhor deseja? – A voz é grave e monotônica. Está mais para um segurança que para um porteiro.

– Sou Jessé, jornalista, e estou fazendo uma matéria sobre a dificuldade em lidar com as populações de rua. O objetivo do artigo é atrair a atenção dos órgãos públicos para reduzir esse incômodo. – Jessé mostra seu documento para a câmera – Eu poderia falar com o síndico ou síndica da condomínio?

– Entre senhor Jessé. Aguarde alguns minutos na sala logo à esquerda da entrada.

A sala parece a recepção vip do aeroporto. Tem ar condicionado apesar de não ter ninguém ali além dele e provavelmente não tem ninguém ali praticamente nunca. Os moradores devem passar direto para seus edifícios, os entregadores não são permitidos nesse tipo de condomínio e provavelmente algum funcionário deve vir pegar as entregas, então será que a sala é apenas para um visitante externo esporádico? Além do ar condicionado tem uma máquina de café, chocolate e chá e outra com aperitivos. Tudo grátis.

Ele espera por uns 10 minutos até que uma porta se abre. Por um instante ele se assusta, pensa ver a sombra de algo muito alto, esguio e com orelhas parecidas com as de um pastor alemão, mas entra um homem negro e magro com óculos de haste metálica bem fina. Logo depois dele uma mulher… um jovem homem? Não um homem adulto, mas de traços muito finos. Os olhos de Jessé se perdem na imagem da pessoa diante dele incapazes de definir seu sexo ou mesmo idade. Ele se levanta pedindo desculpas por perturbar o dia deles. A Pessoa responde e a esperança de Jessé de definir sexo e idade pela voz se desvanece.

– Nenhum incômodo, senhor Jessé. Nós acreditamos em liberdade de expressão aqui e respeitamos muito a imprensa.

A Pessoa estica a mão, o toque é firme, mas macio, a pele é agradavelmente quente e os olhos da pessoa se fixam nos dele. Um arrepio de expectativa e prazer ameaça subir por suas costas, mas ele se controla.

– Eu administro esse condomínio. Somos todos pessoas amigas aqui e damos muito valor à nossa privacidade, entende? Espero que a sua matéria não nos envolva, afinal realmente não temos qualquer incômodo com a pequena população de moradores de rua nas proximidades, muito embora eu entenda que muitas pessoas fora daqui se incomodem muito com eles, o que considero uma lástima. São pessoas como nós que apenas optaram por outro estilo de vida, ou fracassaram em se encaixar na linha de produção da sociedade capitalista.

– Em outros condomínios em que estive existe a preocupação com segurança e muitos se incomodam porque eles “enfeiam” o ambiente.

– Posso lhe garantir que não compartilhamos dessas opiniões e preconceitos aqui.

– O fato deles se acumularem ao redor do seu condomínio não os intriga?

– Eles se acumulam aqui perto? Eu não sabia… Imagino que a região seja melhor para eles, talvez vente mais, eu não saberia dizer o que os atrai para essa região, mas certamente não está ligado a nós. É só isso? Tem mais alguma coisa que possamos fazer por você? – Olhando para o homem ao seu lado… – Chamem um táxi para o Jessé, está muito quente para sair andando e o próximo ponto de ônibus é bem longe se não me engano.

– Perfeitamente… – O homem se inclina, pega o celular e liga para uma cooperativa. Provavelmente uma acostumada a atender esse condomínio.

Percebendo que a pessoa não disse seu nome e com esperança de conseguir alguma informação mais consistente, Jessé se recosta mais confortavelmente deixando claro que ainda não terminou e pergunta.

– Será que eu podia falar com algum dos seus funcionários que atendem a porta? Talvez a experiência deles no sistema de TV ou mesmo chegando e saindo do trabalho me sejam úteis… – e estica a última sílaba como quem está tentando lembrar o nome da outra pessoa – Desculpe, não lembro do seu nome.

– Bem, senhor Jessé, nós não temos funcionários. Não se trata de uma questão de receio de segurança, e sim de não compactuar com uma estrutura social baseada na exploração. Nós mesmos, moradores e moradoras do condomínio, fazemos as tarefas necessárias. Foi o senhor Jonas mesmo aqui ao meu lado que o atendeu no interfone, ele é um dos nossos moradores.

– Que fascinante! A impressão é de que o seu condomínio é praticamente uma sociedade alternativa. Eu gostaria muito de fazer uma matéria sobre vocês, sem citar onde é o condomínio, claro, para respeitar sua privacidade.

– Lamento que isso não seja possível. Nós somos mesmo muito reservados.

Jessé olha casualmente para o celular e percebe que ele está sem sinal… Será que eles tem algum tipo de bloqueador de sinais? Mas como Jonas pode usar o próprio celular? Muito estranho. E a pessoa continua não dizendo o próprio nome.

– Entendo. é uma pena, o caso poderia servir de exemplo para outros, não acha? Para construir uma cultura mais igualitária.

– Utopias não são possíveis, Jessé, elas não passam de sonhos.

– Mas vocês parecem viver em uma, desculpe, eu realmente não lembro do seu nome, que engraçado, né?

– O que n?s temos aqui é apenas um grupo de pessoas que vive respeitando os limites dos outros. Eu não lhe disse meu nome. Ele é irrelevante. Seu táxi…

O carro está parado do lado de fora da sala. Jessé entra agradecendo a colaboração da administradora… Ou do administrador, sem um nome não tem como desvendar seu sexo. Ele decide se referir a ela como A Pessoa ou a Esfinge… Um enigma a ser resolvido que pode transformar nossas vidas.

Assim que o táxi deixa os portões Jessé aborda o motorista.

– Você atende muito o pessoal nesse condomínio, amigo? Que pessoas educadas! Como jornalista não estou acostumado a ser bem tratado.

– De vez em quando, cara. Acho que eles são cientistas, ou religiosos, não sei. São calmos demais para não serem religiosos e uma vez eu trouxe um cientista gringo para cá. Sei que é cientista porque fui pegá-lo num centro de pesquisas da IBM, uma coisa chique lá no Alto da Boa Vista.

Será que o motorista é uma falha nos esforços de privacidade daquele condomínio ou estão lhe entregando uma história de bandeja para que ele não procure por outras? Uma comunidade de cientistas em plena Barra da Tijuca? No Brasil que é um país sem uma tradição de valorizar os pesquisadores? O celular volta a ter sinal…

“Estou no táxi placa XTK 3928 a caminho da casa da Marisa. Aquele lugar é estranho”

“Marisa, desculpe o incômodo sem avisar, posso passar aí? É sobre o que você falou com o Fábio”

– Companheiro, meu dia foi cheio, você pode dar a volta ali e me deixar naquele condomínio com as varandas desencontradas? Pouco antes do que eu acabei de deixar?

– Claro, chefe, eles pagaram para te levar até o centro, mas é você que manda.

Será que ele devia ter deixado o taxista levá-lo para longe e voltar depois? Não… Ele precisa ver a movimentação no condomínio logo depois dele ter passado por lá, se é que já não é tarde demais


– Oi Jessé, então, o que descobriu lá?

– Marisa, me diz que você tem uma janela que dá para lá! Preciso tentar ver de cima o que está rolando e vou te contando tudo.

Ela o leva até uma janela, o toque dela ainda o arrepia, droga, “se concentra Jessé, se concentra”. Felizmente ela tem uma câmera com bom zoom.

Não há qualquer movimentação no condomínio, ninguém nas janelas, ninguém andando entre os prédios. Enquanto ele está observando surgem algumas pessoas para varrer as ruas… Uma em cada piscina recolhendo folhas que que cairam sobre a água… Mas as pessoas não fazem isso naturalmente, é como se estivessem se dedicando a aquelas atividades pela primeira vez. Uma satisfação… Estão lhe mostrando o que esperam que ele ache deles.

– Olha Marisa, você acha essa atividade normal?

– Bem, alguém tem que limpar as coisas, não é?

– Eles não parecem meio desajeitados no que estão fazendo?

– Ora… Se são os próprios moradores como você disse então faz sentido. Eu sou uma tristeza arrumando a cama até hoje, e não me peça para dobrar um lençol de elástico.

Ela ri… Quando ela ri seu rosto parece brilhar… Jessé ri em resposta tentando esconder seus pensamentos… Estranho, tudo parece mais intenso desde que ele conversou com A Pessoa. Bem, ele tira fotos das atividades e das pessoas no condomínio.

O que ele esperava ver? Uma nave espacial do tamanho de uma montanha tocando uma musiquinha sintetizada? Bruxas voando em vassouras? Esferas de luz saindo do mangue e se reunindo no condomínio?

Nos próximos dias ele se dedica à pesquisa. Localiza o táxi e descobre que o motorista estava de folga na véspera em outra cidade e não se parecia nem um pouco com quem o pegou. Os rostos que ele fotografou no condomínio deram em nada, todos desconhecidos. Os quatro moradores de rua que ele abordou no canteiro central desapareceram. Na verdade a população de moradores de rua começou a declinar a olhos vistos, no entanto nenhum outro corpo foi achado. O caso dos corpos achados com algum órgão faltando foram considerados mortes naturais: pessoas que nasceram daquele jeito, como um pulmão por exemplo, e morreram cedo em decorrência da dura vida de rua em dias tão quentes.

Todos vão esquecendo o caso. Um condomínio de gente reservada, moradores de rua que desaparecem, pessoas com características físicas incomuns reunidas em um só lugar… Tudo muito desconexo. Mas Jessé não aceita, ele esteve lá, ele tocou na mão da Pessoa que ele passou a chamar de Esfinge, esse é um enigma que ele carregará por toda a vida se necessário, mas que desvendará.

Começou a passar em frente ao condomínio uma vez por semana em horários diferentes para ver a movimentação. Ao encontrar mais de dois moradores de rua com características físicas incomuns próximos ele os entrevista, perguntando se observaram mudanças, se tinham sonhos.

Ele mesmo passou a sonhar que pulava o muro do condomínio e era cercado por zumbis, por bruxas, cientistas nazistas, robôs que não vinham da Terra. Os detalhes mudavam, mas a experiência era sempre a mesma: ele era destrinchado como uma cobaia ou devorado. Acordava suando olhando ao redor.

Começou a se preocupar mais quando começou a acordar fora da cama. Providenciou grades para as janelas e trancas para as portas com receio de estar sofrendo de sonambulismo, mas se recusando a pensar que na verdade estava sendo abduzido.

Três meses depois a Marisa bateu em sua porta preocupada. Deixou o marido e a filha em casa e foi resgatar o velho amigo. Tirou-o de casa e, achando que o tranquilizaria, deu a notícia de que o condomínio tinha sido abandonado. Que talvez fosse moradia funcional de alguma empresa que decidiu deixar o país e voltaram todos para suas cidades.

Não podia ser isso, aquela gente não se separaria.

Para não deixar Marisa preocupada Jessé finge se tranquilizar. Depois de jantarem diz que finalmente sente que pode dormir em paz, agradece a amiga e vai para casa.

Mas ele não vai para casa. Pega um táxi na rua e parte direto para o condomínio.

Antes de invadi-lo manda mensagem para o Fábio (acha melhor não preocupar a Marisa e ela mora perto demais, pode decidir ir atrás dele) avisando que vai invadir o condomínio.

Nunca mais se ouve falar dele… A polícia faz buscas no condomínio e é informada que foi abandonado por suspeita de problemas estruturais como os da vida do Pan. Alguns buracos de sondas provam que estão sendo feitos estudos geológicos.

A conclusão final é de que Jessé se acidentou e foi arrastado por algum dos jacarés que habitam a região. Seu corpo pode ter sido levado para o mar sumindo para sempre.

Observações

Aff! Perdi totalmente o controle do conto… Esse fica no hall das falhas.

Hoje não estou num bom dia. Difícil de me concentrar, muito sono.

A história devia ter vários acontecimentos que poderiam ser interpretados de diversas formas, cada pessoa os explicaria de uma forma, Marisa seria a racional, lógica, que encontra explicações perfeitamente naturais, Fábio não se importaria muito com a explicação querendo apenas uma boa matéria, Jessé tem o compromisso com a verdade, mas faria o papel da nossa razão que tenta extrair a verdade combinando os fatos e as nossas intuições. Esfinge é o mistério, as coisas da vida que tem tantos aspectos que não conseguimos definir. O personagem que teria a voz mais mística nem chegou a aparecer.

Ainda acho que o plot é aproveitável, mas a execução ficou péssima. :-/

O processo criativo

Escrevo esses contos em tempo real no Google Drive e, no começo, compartilho o processo criativo. Marco o horário de tempos em tempos para o leitor poder ter uma noção de quanto tempo demorei em cada coisa.

[8h10] Atrasadão! Ainda tenho que tomar uma ducha para acordar adequadamente nesse calor!

Para tentar recuperar o tempo perdido, vou ver o resultado dos votos antes da ducha.

Que engraçado! Empataram Scifi, Fantasia e realista! Quando empata tento fazer tudo, mas acho meio impossível dessa vez ;-) Meio, né? Porque nada é totalmente impossível.

O resultado então foi: Suspense, adulto, presente e tentar achar algo que satisfaça quem curte fantasia, scifi e realista… HWJN, um livro scifi de fantasia árabe pode ser uma boa fonte de inspiração. Ele é meio realista também.

Bom, vou para a ducha… [8h18]

[8h33] Aha! Nada como um bom banho para acordar as ideias! Principalmente nesse calor!

Fiquei pensando em filmes e livros que misturam realismo, scifi e fantasia e me toquei que são muitos! Desde Contato de Carl Sagan, até o recente Exodus passando por Babylon 5. Lembrei de um livro que não li, mas me contaram, onde um pesquisador descobre que muitas aparições de santos terminavam de formas estranhas, um até parecendo ter sido ferido. Nessa história os santos na verdade são alienígenas e há duas facções tentando influenciar a humanidade. Lembrei também de Triângulo do Diabo, um filme trash onde um dos personagens é cético e arranja explicações naturais para cada morte estranha no barco.

No entanto quase sempre as histórias escolhem uma verdade e terminam deixando claro que é realista, scifi ou fantasia, só que a vida não é assim, né? A gente não tem certeza… Digo, normalmente cada um tem a sua certeza, exceto pelos Demians (do Herman Hesse) que mantém sua mente livre das certezas.

O que me lembra de Lost… A ilha jamais é claramente explicada. Scifi… Fantasia… Apenas algum fenômeno natural que ainda não entendemos?

Tudo isso está muito ligado à nossa necessidade de ter explicações para as coisas, de construir bases sólidas para a nossa visão de mundo ainda que, na minha opinião, estejamos longe de ter bases sólidas simplesmente porque mal arranhamos a superfície do Universo até agora.

Esse é um bom tema para um conto de suspense, as diversas formas como cada um entende a realidade à partir da sua cultura e do seu impulso pessoal.

Resumindo, vou tentar fazer scifi, fantasia e realista! Ra! ;-)

Suspense… Adulto… Presente… Me passou ainda há pouco uma cena de Sleep Hollow (com a Cristina Ricci e o Johny Deep) e agora lembrei de 1Q84. Uma sociedade alternativa envolta em mistério, uma série de crimes dentro dela ou nas proximidades… Tem um episódio de Arquivo X em uma comunidade assim que, no final, parece ser composta por alienígenas capazes de mudar de sexo…

Cheguei a pensar em começar com um personagem meu, o Gato de Botas, conversando comigo sobre o desafio de escrever esse conto, mas pouca gente conhece o personagem e ia ficar difícil de entender. Aliás, um dia tenho que fazer um conto desses com ele, talvez reapresentando ele.

Bem… Temos então um mistério envolvendo uma sociedade fechada, um investigador… Não! O protagonista não será o investigador, talvez um jornalista? É uma boa chance de trazer à tona a discussão sobre o que é ser um bom jornalista, ir atrás dos fatos, da verdade, e não do espetáculo que vende jornais. O líder da comunidade será alguém andrógino, impossível definir se é homem ou mulher e sua identidade será um segredo. Vou tentar usar Desejo, um dos Perpétuos do Neil Gaiman como modelo. Sempre se referirão a essa personagem como “A Pessoa”. Hummm… Vou chamar a pessoa de Esfinge. Esfinges guardam o segredo da natureza humana e seus enigmas podem nos matar.

[9h05] Meu tempo está ficando curto, mas ainda não estou pronto para começar… Quase…

Grande parte do processo criativo, pelo menos para mim, é esse brainstorm. Uma combinação entre deixar a imaginação solta, pescar referências que surgem, buscar ideias que pareçam mais originais e tentar domesticar um pouco a criatividade para fixar em alguma coisa, para construir um tipo de espinha dorsal. Essa é uma das partes mais críticas.

Tá muito 1Q84 por enquanto, não posso começar a escrever enquanto estiver assim ou sairá um tipo de versão da mesma história.

Hummm… Uma sociedade alternativa que alimenta essa visão indefinida dela mesma: são cientistas, místicos ou alienígenas? Realista, fantasia ou scifi? Isso até pode ter uma relação distante com outro conto desse projeto onde o casal entra em contato com uma cidade sendo desenvolvida secretamente para lidar com o novo clima do planeta.

Os mistérios… Desaparecidos, mortos em circunstâncias ou com quadros clínicos estranhos e mutações nas proximidades da tal sociedade alternativa.

Falta eu saber qual é o final disso tudo… Ou não… É arriscado, mas posso começar sem saber como termina…

[9h15] Pensando? [9h25]

Vou deixar mais um mistério no conto: sei ou não sei o final dele? O mistério que se esconde sob a história?
(Não sabia…)

Hangout pós conto

Imagem

Visão aérea da comunidade fechada do filme The Giver (material promocional).