Sobre o Um Sábado, Um Conto

O Conto

(aviso: leia as observações antes de me condenar cancelar)

Edison está parado na rua mal iluminada a um quarteirão do pulgueiro onde ele mora. É um bairro da periferia, desses esquecidos pelo governo, e ele só conseguiu alugar um lugar na periferia da periferia, uma daquelas regiões povoadas pela escória: Prostitutas, porteiros, diaristas, cabeleireiros, “autônomos” Aquelas pessoas que não conseguem se juntar a outras para alugar um bom lugar e acabam morando sozinhas naquela região obscura entre a sociedade e uma “não sociedade” que não é tratada como cidadã.

Em frente a ele uma moça de menos de trinta olha com raiva para seus olhos, ela não tem medo dele, não parece ter medo de nada… Vai acabar morrendo jovem, não vai passar dos trinta com certeza. Toda semana some alguém ou aparece morto com bala perdida ou em um assalto. São 50 mil por ano no Brasil e ele acha que são todos dali, daquele quarteirão.

– Você sabe quem é a Josiane! Ela me mandou uma foto sua no dia que sumiu! Disse que você era cupincha do pai do merda que ela tava pegando.

– Você é maluca, guria? Vem me cercar numa rua escura para insinuar que sei alguma coisa do sumiço da sua amiga? Vai ver ela estava envolvida com drogas, queima de arquivo, guerra de gangue.

Edison sabe que não é nada disso, que certamente o filhinho-do-papai do chefe dele deu cabo da moça como já fez outras vezes, mas o Dr. Eduardo é empresário poderoso, cheio de contatos com políticos e milicianos. Ele encobre tudo para o marginalzinho do filho que é mais velho que Edson, tem quase trinta e cinco anos, e se comporta como um garotão de vinte. Será um bom herdeiro dos esquemas do pai.

Um cara passando do outro lado da rua os vê. É assaltante, quer dizer, ele é sapateiro, trabalha numa loja que é uma porta num prédio semi abandonado, mas isso não dá para viver e ele faz uns ganhos aqui ou ali, à mão armada. Mas o cara não vai se meter com eles, os dois já beberam chope juntos umas duas ou três vezes.

– Não tenho medo de você! – E tira uma faca da bolsa. Ela segura firme, não treme, não terá medo de usá-la, mas alguém pior que o Edison não se intimidaria apesar da segurança dela. A coisa ficaria ruim.

– Vamos sair daqui moça. Se eu te deixar sozinha aqui vão acabar te matando e vai sobrar para mim de novo. Duas esquinas para lá tem um ponto de ônibus, umas barraquinhas de podrão. A gente conversa lá.

Gabriela vai seguindo Edison de perto com a mão dentro da bolsa segurando firme no cabo da faca, presente do irmão dela do exército que mora em outro estado. Uma mulher tem que saber se defender e ela certamente não é do tipo de pessoa que se encolhe diante da vida. Ela prefere morrer a viver com medo. Talvez ela não tenha noção dos riscos que está correndo. Se acostumou a ser a valente da turma desde pequena, entre meninos e meninas ela era a mais destemida, mas a vida adulta é diferente da vida de criança. Em todo o caso a falta de noção de medo ela manteve.

O lugar é uma pequena praça movimentada e bem iluminada, casais namoram nos bancos, pessoas caminham chegando do trabalho depois de quase suas horas de trânsito ou saindo para suas atividades noturnas.

Gabriela se pergunta se é seguro para o cara falar com ela ali no meio de tanta gente, mas na verdade todos vão passando sem olhar muito para os lados. Numa rua transversal e mais escura dá para ver de vez em quando uma negociação de drogas. Ela morou em uma região parecida, uma favela, até os 18 anos quando sua família conseguiu alugar um apartamento minúsculo num bairro melhor. Hoje ela divide um apartamento até bom com mais 4 amigos e amigas.

– Então, moça, quem é a guria que você tá procurando? Porque acha que eu sei alguma coisa dela mesmo? Que foto é essa que ela te mandou? Mostra aí.

– Mostro porra nenhuma! Para você arrancar meu celular e sair correndo? Nem pensar! Você trabalha para o Dr. Eduardo que eu sei, você dá cobertura pro marginal do filho dele. Eu quero saber o que eles fizeram com a Josiane!

– Tá, e você acha que, se eu soubesse, ia te contar? Por conta de quê? Você vai me pagar para sumir dessa cidade? Do Brasil? Mas eu não sei nada!

Ela encosta nele, aproxima o rosto do dele olhando ameaçadoramente nos olhos dele e diz “Eu sei que você sabe, malandro, eu te segui, tirei fotos, tá tudo com um amigo para passar para a polícia e, se você não me procurar logo com uma resposta, eu vou armar para você e é tu que vai levar a culpa pelo sumiço da Josiane!”

Edison não sabe quem é a doida que fala como se fosse rainha do tráfico, acha melhor obedecer, ganhar algum tempo.

– Olha, juro que não sei, mas vou descobrir! Como eu te acho? Não tô dizendo que tenho nada a ver com isso, mas a gente sempre conhece alguém que conhece alguém…

– Me encontra aqui amanhã de noite, 21h tá bom?

Edison confirma com a cabeça. Vai ser difícil e o que ele vai fazer com a informação? Com certeza o marginalzinho matou a guria… como se chama mesmo? Josiane.

Logo de manhã ele liga para o escritório do atual chefe. O trampo de garoto de recados é recente, não tem muito mais de seis meses… Quase um recorde! E agora isso… Edison deixa um recado “Estão procurando pela Josiane”. Não dá meia hora e ele recebe um SMS dizendo para ir para um lugar em uma hora.

– Tá maluco, seu bosta? – Ele nunca fala pessoalmente com o Dr. Eduardo, é um assistente dele que vai ao seu encontro. – Deixando recado?

“Fiz merda de novo? Eu só faço merda… Droga de vida, só posso ter nascido torto errado”

Edison parece se encolher, ele sabe dos custos de contrariar gente como o Dr. Eduardo.

– Eu não sabia o que fazer… Ouvi uns papos nos botecos de que tinha uma Josiane sumida, que seria outra Amarildo. Tinham uns caras que pareciam jornalistas.

Era mentira, claro, se ele envolvesse a mulher do dia anterior ia acabar ficando pior ainda para ele. A polícia de um lado e o Dr. Eduardo do outro porque ele deu o serviço para uma mulher qualquer na rua. Edison estava se sentindo um gênio por ter pensado nessa história de “estão falando nos botecos”.

– Tá… Tá bom, então. Só não faça mais isso, espere nós te procurarmos. Deixa essa história para lá. Não é da sua conta.

– É que eu levei a moça até a casa? Aquela casa? E se alguém me viu? Vai sobrar para mim, né?

– E se sobrar? Qual é o problema? Tu quer ficar mal na fita com os jornalistas ou com o Dr.?

Edison percebe a besteira que fez. Olha para os lados procurando uma saída. É claro que ele é o ponto fraco, que vão matá-lo ali mesmo e pronto, foi o favelado com ligação com o tráfico que matou a Josiane Amarilda. “Burro! Burro! Burro!!”

Antes que o assistente do Dr. Eduardo possa dizer alguma coisa ele sai correndo, eles estão no segundo andar de um prédio em construção. O salto é perigoso, mas não tanto quanto levar um tiro ali mesmo, ele já levou um tiro antes e não quer aquela sensação de novo, e nem morrer esquecido numa escada em um campo de construção.

Por pouco ele não cai sobre vergalhões, mas tem sorte de aterrissar sobre um banco de areia. Ele olha para cima e vê dois homens armados ao lado do assistente do Dr. Eduardo, mas ele os está impedindo. Tem pessoas passando pela frente da obra… Pelo jeito é uma visita de inspeção inesperada. Sorte, pura sorte. Do contrário o lugar estaria completamente deserto a essa hora pois a obra está paralisada.

“Não posso voltar para casa… Não posso sumir, não tenho grana para sumir, só se virar morador de rua, mendigo… Merda, esse deve ser o meu futuro de qualquer jeito, mas vão acabar me achando… O Dr. Eduardo vai mexer os pauzinhos para jogar a culpa em alguém e a amiga da Josiane não vai descansar… A louca se meteu com um homem estranho numa rua escura de um dos pontos mais perigosos da cidade. Ela é louca ou federal, sei lá!”

Os pensamentos de Edison não param enquanto ele caminha rápido para longe, sem destino. Não corre porque pobre correndo tá no erro, mas por sorte a região é cheia de ruas estreitas por onde ele consegue sumir rapidamente sem ser seguido.

“Vou ser direto: cadê meu filho?” O SMS veio de um celular não identificado, com certeza uma linha usada só para enviar essa mensagem, mas está claro de quem veio. Como assim, “cadê meu filho”? O desespero do Edison só aumenta. Agora ele tem a amiga maluca da Josiane e o pai barra pesada do marginal que sumiu, como ele teria sumido?

“Tenho que recapitular tudo que aconteceu”. Edison segue andando meio sem rumo, buscando ruas que não devem ser vigiadas, aquelas mais estreitas que são transformadas em banheiros públicos que todos evitam, exceto pelos mendigos mais perdidos.

Quando está no meio de uma dessas travessas fedorentas ele vê um cara e uma menina atravessando no sentido contrário. Percebe que a rua termina no prédio abandonado ao lado do próprio prédio. Sem notar ele estava voltando para casa… Pelo menos o que vem sendo a casa dele há mais tempo. No entanto os dois vindo em sua direção fogem totalmente da normalidade, quer dizer, da normalidade daquela região… A rua pútrida, um cara de uns vinte e poucos anos de mãos dadas com uma menina muito bem vestida, com os cabelos negros e muito lisos brilhando com a pouca luz que entra na viela, mas descalça naquele chão imundo com excrementos humanos e animais, ela parece não se importar, seu rosto não tem expressão, seus olhos são profundos e negros como os pesadelos. Ela parece ser a pessoa forte na estranha dupla, como se a menina de onze anos fosse uma irmã mais velha.

– Você não devia atravessar essa travessa… Perigoso.

A voz dela não tem expressão, não tem variações de tom, mas ele acha que, de alguma forma, ela está preocupada com ele. Olhando para baixo ele percebe que, ainda que o chão esteja realmente imundo e úmido os pés da criança estão totalmente limpos, como se a maior podridão do mundo não pudesse chegar perto dela. O cara ao lado tinha o olhar perdido, como quem não se importa mais com o próprio destino.

A menina continua…

– Já que você decidiu seguir esse caminho… Você vai encontrar a moça naquele edifício ali em frente… E o moço também… Eu diria que ela estará no nono andar. Ele eu não sei. E tem a outra moça. É melhor você ir. Estou com fome, tenho que me alimentar logo.

Ela mal para enquanto fala com ele. Edison segue seu caminho virando e quase andando de costas para ver aonde os dois vão. A menina está encostando o cara contra uma reentrância na parede e olha para o Edison e balança negativamente a cabeça, ele entende que é melhor não se meter e vira de costas para os dois. Um ruído seco, como alguém inspirando com muito esforço todo o ar que pode, vem de trás dele, um risinho animado vem logo depois “não olhe para trás, não olhe para trás!”. Ele acredita no sobrenatural como todo mundo: é algo em que todo mundo tem que acreditar, mas quase ninguém acha que acontece de verdade, entretanto o que foi aquilo?

Quando ele sai da travessa um peso deixa seu coração, é como se as sombras estivessem se infiltrando no seu corpo enquanto estava lá dentro.

Ele se lembra que está perto de casa! Podem estar esperando por ele. As coisas que a menina falou… Como ela sabia? Edison decide se enfiar logo dentro do prédio abandonado. Pode ser tudo uma armadilha, ele pode simplesmente estar louco, mas o que mais ele pode fazer?

O prédio abandonado é estranho, cercado de tapumes com alguns espaços aqui ou ali. Era para ter mendigos ou, pelo menos, gatos morando ali, mas está deserto, nem mesmo os pombos pousam lá dentro.

Olhando ao redor e pensando Edison percebe que o apartamento para onde o filho do Dr. Eduardo leva mulheres fica do outro lado do quarteirão… De frente para o edifício. Ele pode mesmo esconder os corpos em algum lugar por ali. Será que a menina tinha visto? Ninguém presta atenção em crianças e ela pode tê-lo visto deixando a moça no prédio, pode ter flagrado o marginalzinho descendo com o corpo? Só que era impossível não notar aquela criança, ela simplesmente não se encaixa no meio. Não se encaixaria em nenhum meio.

“A criança disse nono andar?”

O prédio abandonada nunca chegou a ser completamente construído. Tem pilastras com vergalhões expostos e escadas sem paredes convidando para uma queda mortal. Ainda não é uma da tarde, o sol está a pino, devia estar um calor infernal, mas está frio, realmente frio! “Que lugar é esse” fica ecoando como um mantra em sua cabeça.

Ele está subindo cuidadosamente para o segundo andar quando uma coisa se atira sobre ele jogando-o contra a parede. Uma lanterna se acende na cara dele.

– Você veio esconder o corpo?

É a maluca da noite anterior. Como ela foi parar lá?

– Você tá maluca? Esfolei meu braço todo! Se eu vim esconder um corpo posso esconder logo dois!

– Eu tô armada…

– Aquela faquinha? Você só vai me arranhar…

O tiro ecoa e a bala atinge a parede a um metro dele. Ele estava blefando, mas pelo jeito ela não blefa… O som do tiro parece ser devorado pelas paredes, não há barulho de aves, gatos ou cães fugindo do estampido, só um silêncio que parece quase sólido.

– Olha, moça, eu não estava falando sério, nunca feri ninguém na minha vida, sou um lixo humano que provavelmente vai morrer mendigando pela rua, mas não vou largar fácil da minha vida! E não faria uma loucura qualquer como matar gente ou esconder corpos! Eu vim aqui… vim aqui seguindo uma intuição. Eu admito que o cara que saía com a sua amiga tem um apartamento no prédio ali atrás e…

– É, e foi assim que eu vim parar aqui também. Se ele fez alguma coisa com a minha amiga foi aqui que ele a escondeu. Ontem eu saltei do ônibus um ponto depois e passei a noite de olho nesse prédio. Ninguém entrou, ninguém saiu… Quer dizer… Deixa para lá.

– Como assim, deixa para lá? “Quer dizer…” o quê?

– Tinha gente que meio que aparecia e sumia do nada. Talvez passando por brechas no tapume que eu não via de onde estava. A que me chamou mais a atenção foi uma menininha de uns 11 anos. Muito bem vestida para ser uma menina de rua. Estranho… Mas isso não importa! Já vasculhei o primeiro andar, não tem nada lá. Estava chegando no segundo quando ouvi seu barulho subindo a escada. Se fosse o canalha eu tinha enfiado a bala na virilha dele e arrancado uma confissão!

– Corre…

Edison escuta a voz infantil como se ela estivesse grudada no seu ouvido sussurrando. A expressão da Gabriela deixa claro que ela não ouviu nada, mas o frio começa a ser substituído por um calor sufocante.

– Guria, abaixa essa arma, a gente precisa subir eu… Eu vi luz no nono andar há alguns dias, moro ali do lado…

– CORRE AGORA! – A mesma voz monotonal da criança do beco, mas algo nela tem um tom de urgência.

Gabriela está virando o rosto para a escada que sobe, ela percebe que tem algo subindo… Algo, não alguém.

Ela apaga a lanterna, abaixa a arma e começa a subir as escadas correndo, Edison vai logo atrás. A cada andar que eles passam dá para ver na luz fraca que entra pelas fendas que há símbolos desenhados nas paredes ao lado da entrada de cada andar, símbolos que ele não conhece.

– Vamos ser alcançados! Entra na próxima, maluca!

Gabriela olha irritada para ele “como assim maluca?”, mas resolve deixar isso para depois.

Eles estão no quinto andar e tem um tipo de porta separando as escadas do corredor. Eles passam e fecham atrás deles. Logo depois ela começa a vibrar e estalar. Eles colocam a mão sobre ela e quase se queimam. A vibração deve ser do ar mais quente nas escadas provocando um tipo de vácuo. Que diabos pode provocar isso? Alguém subindo com uma churrasqueira? Edison ri da própria ideia, mas é um riso nervoso que não chega aos seus lábios.

– Esse prédio é grande, deve ter outro conjunto de escadas, eu não subo atrás disso de jeito nenhum – Os olhos do Edison devem estar muito apavorados pois Gabriela, que olha intrigada para a porta e tem vontade de ir atrás do que quer que tenha passado ali, decide acatar a covardia.

Enquanto eles percorrem o corredor buscando outro lance de escadas escutam ruídos, pensam ver alguma coisa em sua visão periférica, mas ao encarar o movimento não há nada. Os apartamentos não tem portas então pode-se ver diretamente a sala e os grandes vãos para janelas. O espaço aberto parece sugá-los… Na verdade literalmente eles se sentem sugados. Se desequilibram quase caindo para dentro dos apartamentos ao passar por cada um.

– Será que esse prédio está torto, por isso pararam a construção? – Gabriela não parece estar tentando se iludir que algo estranho acontece ali, realmente não passa por sua cabeça a possibilidade de algo sobrenatural, mas Edison está ficando apavorado. O que ele vê perifericamente parecem monges esticando os braços para eles, mas ao olhar diretamente vê que é só uma pilastra ou uma parede manchada.

Os dois encontram outro conjunto de escadas. Essas soltam um vento fresco, mas não gelado e muito menos quente como a outra. Seja o que for que passou lá talvez vá percorrer os 15 andares antes de passar para o outro lado.

Gabriela o arrasta correndo até o nono andar, ela parece não se incomodar muito com isso, mas Edison está quase cuspindo o coração e os pulmões em uma poça de sangue e suor.

Assim que entram eles escutam uma voz infantil cantando, Edison olha para a Gabriela se perguntando se ela está ouvindo também ou se essas vozes são alucinações dele, mas ela está olhando na direção da música e caminhando para ela intrigada.

Frère Jacques, frère Jacques,

Dormez-vous… Dormez-vous…

Sonnez les matines! Sonnez les matines!

Din, dan, don. Din, dan, don.

Gabriela segue segurando a arma nas suas costas e nem se importa com o que Edison está fazendo, mas ele não pode deixar alguém sozinho nessa situação, ainda que esteja cada vez mais apavorado.

No fim do corredor tem mais um apartamento e lá dentro, brincando com uma boneca, a menina do beco. Sentada de pernas cruzadas. Agora sua pele está empoeirada, o cabelo um pouco desarrumado e as roupas pretas com alguns sinais de poeira branca dos rebocos do prédio mal acabado. É ela que canta.

Quando chegam mais perto percebem que a boneca é feita de ossos… Podiam ser ossos de mãos humanas, mas não é possível, devem ser de animais que a menina acha mortos ou… Melhor não pensar em “ous”.

– Ô garotinha! Qual é o seu nome? Você está sempre aqui? – A segurança da Gabriele é impressionante. Será que ela é daquelas pessoas que se mantém como uma rocha durante o perigo e desabam depois ou sequer percebe como a situação é estranha e potencialmente… mortal?

– Moro aqui. Você veio… – A mesma voz monotonal do beco. A menina exibe o que parece um sorriso muito discreto nos lábios. Ela olha para a Gabriela.

– Gabriela, né? Tanta coragem. Tão saborosa… Mas o Júlio me pediu para me comportar, para não me alimentar de gente boa.

Os olhos negros brilham e um sorriso de dentes perfeitos se abre para os dois. Gabriela franze a testa. Como a menina sabe seu nome? O que ela está dizendo?

– Sim, sou Gabriela, mocinha! Você é muito esperta, viu? Olha, você sabe se um cara trouxe uma moça para esse prédio há uns três dias?

– Sei.

Os dois ficam olhando para ela esperando mais alguma coisa, no entanto ela se levanta, caminha para um quarto e, quando eles entram atrás dela o cômodo está vazio. Edison olha imediatamente para Gabriela curioso, será que agora dá um chilique? Vendo seu mundo racional desabar?

Ela olha de volta para ele, vasculha o quarto, vai até o vão da janela, mas se detém a quatro passos dele.

– Mesmo que ela tenha descido pelo v?o da janela nós certamente estamos no meio de algo que foge à razão… Isso quer dizer que temos que nos apressar para achar a Jô! Vamos vasculhar esse andar inteiro, Já! Vai por esse lado, eu vou pelo outro, toma minha faca. Qualquer coisa grita.

– “Qualquer coisa grita”? O que você quer dizer com “qualquer coisa”? Já tem muita coisa para eu começar a gritar agora! Você é doida? Vamos dar o fora daqui!

– Não vou te impedir. Vou pela direita, me encontra do outro lado.

Antes que a Gabriela chegue na metade do corredor que tem que vasculhar escuta o grito do Edison ecoando pelo prédio. Ela corre o resto do caminho dando olhadas de soslaio nos vãos dos apartamentos por onde vai passado. Não faz sentido voltar por onde já veio. Quanto mais rápido ela segue mais tem a impressão de ver coisas que se desvanecem assim que ela concentra sua atenção nelas. Em apenas um ela vê realmente uma cama com um caixote ao lado que poderia ser um tipo de mesa de cabeceira, seria um apartamento habitado no meio de todo aquele mistério?

Quando ela vira no corredor certo encontra Edison encostado contra a parede, olhos fixos no apartamento em frente, os dedos cravados na parede como se pudesse furá-la.

– Gabriela… Você precisa olhar com calma.

Ele está ofegante, seus olhos denunciam a luta interna entre o impulso de correr e algum outro sentimento que o faz permanecer ali encarando o apartamento vazio. Pelo menos é o que Gabriela vê a princípio: um apartamento vazio como os outros.

– Olhe para a parede de forma que o vão do apartamento fique na sua visão periférica, me avise quando algo acontecer.

– Hummm. Tá! – Apesar de tudo ela parece c?tica

– T?á vendo alguma coisa mudar?

– Dá uma ilusão de ótica de que tem um ponto, uma coisa luminosa lá para dentro… Espera, agora tá ficando tudo escuro… Perdi o foco, calma, vou pegar de novo… Peguei! É como se fosse noite no apartamento e definitivamente tem uma coisa luminosa na parede direto em frente. Mas ela parece três vezes mais distante que deveria e… Jô!!!! É a Jô na parede!! Vestida de branco!

Ela estava apoiada em um dos joelhos ao lado de Edison e tenta levantar imediatamente para correr para dentro do apartamento que ela olha diretamente agora, como Edison, como se um tipo de véu tivesse sido retirado, mas ele a segura.

– Tem mais! Não se afobe!

– Eu não sou afo… Tem coisas nas sombras… Pequenos rostinhos? Não… são rostos normais, só que estão longe. É como se esse quarto fosse maior que o prédio inteiro… Edison, Vai embora. Eu vou lá pegar a Jô. Tá na cara que você não tem nada com isso.

Edison olha para a mulher decidida ao lado dele. Que tipo de amizade é essa? Ele nunca viu nada assim. Mesmo que as duas fossem casadas, as pessoas simplesmente não são fieis assim umas às outras, ou será que, da mesma forma que aquele prédio parece estar em um tipo de realidade demoníaca, tem pessoas que vivem em outras realidades que ele nunca encontrou antes? Por que será? A moça ao lado dele e a que está presa lá dentro tem a mesma história de vida dele, pelo menos vieram dos mesmos tipos de lugares…

Gabriela está caminhando lentamente para dentro do apartamento, algo lhe diz que não adianta correr ali, que os instrumentos para sair daquela situação são outros.

– Ela nos pertence, está aqui para ser protegida.

A voz vem de dentro deles. Gabriela olha para o lado e Edison está com ela, já alguns passos dentro das trevas que englobam o lugar.

– Ela estará melhor com os amigos dela, com seus semelhantes

– Ela já não é mais seu semelhante Gabriela. Sua alma está partida pelo ódio e violência que sofreu, ela pertence a nós.

Edison segue calado um passo atrás de Gabriela, ele não sabe o que fazer, o que falar, só sabe que deve ficar ao lado das moças, que, se a vida dele valeu para alguma coisa, foi para estar realmente ao lado dessas estranhas agora, que todo o resto da vida dele foi uma luta contra a vida, foi resistência a se abrir para o mundo.

– Eu preciso falar com ela, por favor?

As trevas parecem tecidos negros que se insuflam com algum vento sobrenatural cercando os dois cada vez mais perto, já não se vê a abertura do apartamento lá do outro lado e Edison sente que não haverá saída dali. Que eles deixaram o mundo definitivamente.

Gabriela não para de avançar, ainda que lentamente. Sua amiga flutua poucos metros à frente, os olhos fechados, a pele negra pálida como cera, os cabelos encaracolados parecem frios e mortos…

Gabriela estica a mão e toca a bochecha que deve estar rígida, mas o toque parece distribuir cor novamente para a pele esbranquiçada.

Mais um passo e ela consegue abraçar a amiga que abre os olhos desabando sobre o abraço firme da amiga. Seus olhos se abrem em um fiapo de vida.

– Nós a estamos mantendo em suspensão no tempo, não é alimento para nós. O homem que a trouxe aqui está nos servindo muito bem, mas se ela for levada o fragmento de vida que ainda a sustenta se extinguirá.

Gabriela chora… Josiane fala como se fosse a ilusão de vozes na brisa de outono

– Tudo bem amiga… Eu aceito o meu fim. Aqui não é tão ruim… A maldade primitiva deles é pacífica… Eles se alimentam de culpa, de almas partidas… Não sou nem um, nem outro. E sonho…

Edison se aproxima olhando apaixonado para a amizade que une as duas. Pensa “Eu morreria por elas agora…”

– Pode ser feito. Os três ouviram as vozes vindo de dentro deles, mas só Edison entendeu a que ela se referia e pensou…

“Eu tenho culpa? Minha alma é partida? Eu vou sofrer? Para sempre? Aqui é o Inferno?”

– Sim, nada é para sempre e não. Essas são as suas respostas.

Edison olha para as duas fazendo sinal para voltarem pelo caminho que vieram, já é possível ver novamente a abertura para fora do apartamento se abrindo. Ele caminha de costas no sentido contrário. Uma brisa lilás agita seus cabelos soprando na direção das duas, devolvendo cor para Josiane enquanto ele mesmo vai ficando cada vez mais pálido, sentindo um gelo cortante rasgando seu coração, pavor preenchendo sua mente e seu corpo sendo partido por dentro, mas seus olhos refletem apenas determinação.

Gabriela recua, é obrigada a recuar por mais que se esforce para voltar e salvar também o homem que se sacrifica por elas sem perceber que ele se sacrifica também por ele mesmo. Lágrimas correm por seus olhos conforme sente a amiga cada vez mais viva em seus braços até finalmente ser obrigada a recuar para fora do apartamento e tudo some deixando-as sozinhas no prédio abandonado.

Uma coisa é certa. Gabriela não descansará enquanto não descobrir o que aconteceu com Edison e como resgatá-lo também!

[13h31]

Vlog

Observações

Preciso aprender que, para fazer aventura em quatro ou cinco horas tenho que começar com ela e seguir em flash back.

Logo no primeiro parágrafo rotulo de escória prostitutas, porteiros, cabeleireiros e outras profissões que na verdade considero tão nobres quanto as outras. A intenção, mal realizada, é colocar que a sociedade vê essas atividades como vulgares ou inferiores.

Até metade do conto tive receio de ficar muito ruim, mas gostei muito do tipo de amizade que surgiu entre as duas amigas e da relação que se construiu entre Edison e Gabriela.

Gosto especialmente da ideia das realidades… A demoníaca do prédio (dá para notar que a menininha do beco é um demônio?), a impessoal do Edison onde os relacionamentos são cercados de desconfiança e a pura das meninas mulheres onde a sinceridade e transparência se sobrepõe aos medos.

O apartamento que a Gabriela vê que é aparentemente habitado é onde o Júlio mora. Ele é humano, protagonista nesse universo de fantasia que venho construindo.

Uma curiosidade para quem gosta de coincidências assustadoras ;-)

Do meio para o final do conto coloquei músicas aleatórias para tocar no YouTube. Quando acabei o conto estava no clipe abaixo… Leia o conto e depois assista o clipe… Bizarro, né?

O Processo Criativo

[8h30 +-]

Mega atrasado!!! Caiu dilúvio de ontem para hoje de madrugada. Tive que cuidar da varanda que enche… essas coisas, mas chuva é bom! Tá fresco :) Vou direto ao assunto! Vamos ver o que tenho que escrever hoje!

O problema de ter pouca gente votando é que dá muito empate. Tenho que dar um jeito de animar mais o pessoal a votar, né?

Empate entre presente e futuro e entre scifi e fantasia. No mais ficou Aventura, adulto.

Aventura… Adulto… Sempre pego muito leve no adulto… É porque esses contos são públicos demais. E por pegar leve nem digo que tem pouco sexo, não vejo adulto como sexo e sim como questões morais mais pesadas e uma representação mais crua de aspectos da nossa sociedade que não gostamos de ver. Acho que vou pegar bem mais pesado hoje… Tô atrasado e escrevo mais rápido se não ficar me impondo limites. Tenho mais facilidade para escrever fantasia que scifi então vou resolver o empate decidindo por fantasia e, por fim, é uma aventura. Então fica:

Aventura, adulto, fantasia no presente.

Acho que vou aproveitar um universo que estou criando num dos livros que estou desenvolvendo. Um que pode até ser meio inspirado em Deuses Americanos do Neil Gaiman pois o sobrenatural existe, mas se camufla entre nós de forma que poucas pessoas o percebem. Tô pensando em como apresentar as particularidades dele no conto, ou talvez mude totalmente de ideia. Vamos vendo.

O protagonista é um cara. Pouco mais de 30 anos. Quando a gente tem vinte e poucos ainda parece que o mundo será nosso, mas ele já percebeu que fracassou. Não se dedicou a nada a ponto de se tornar muito bom no que faz. Ele faz um pouco de tudo e tudo mais ou menos. É aquele cara que trabalha uns meses, um ano, num lugar e depois é demitido simplesmente porque a função que ele ocupa sumiu.

Edison, ele se chama Edison. É um bom nome. Já foi de um dos maiores cientistas do passado (apesar de ser uma sombra perto do Tesla) e hoje é um nome popular. As pessoas desprezam o que é popular, todo mundo quer o especial. Tudo é ilusão pois quase todos nós somos populares, só que nos debatemos para sonharmos que somos especiais. Tentamos nos sentir melhores do que os outros porque não gostamos daquela música popular, do programa popular.

Edison já passou dessa fase, já perdeu esse sonho. Ele mora em um conjugado num bairro da periferia, um prédio com baratas e eventuais ratos que devem vir de outros apartamentos pois o dele até que é arrumadinho e limpinho.

A fantasia vem do prédio vizinho… Abandonado há décadas. Lá vivem diversas linhagens de monstros do crepúsculo…. Vou fugir desse crepúsculo senão vão pensar que tem vampiro porpurinado no conto! Monstros noturnos, pronto.

Uma aventura solitária ou com companhia? Acho que aventuras solitárias sempre viram meio terror, mas já tô indo por esse caminho, né?

Tem que ter alguém com ele… É uma amizade profunda ou mero conhecido ou conhecida? Ele é aquele estereótipo do homem que não é capaz de ser transparente em sua relação com mulheres, é uma disputa de poder em que ele quer usá-la. A maioria das mulheres notam, mas fazem de conta que não percebem porque é assim mesmo e, se quiserem namorar, terão que aturar o machismo da sociedade. Outras não topam… Hummm… Gabriela, um nome forte. Ela sabe que o Edison é um merda, mas vai ter que passar pelo que quer que seja ao lado dele… Na verdade é uma fórmula bem comum… Como Jack Sparrow e seus aliados. Só que o Jack leva o conceito ao extremo: egoísta ou no fundo é bom e companheiro? Deixa o Jack guardado aqui. Edison não pode ser tão bom no que faz, pelo contrário, ele é de mediano para ruim em tudo.

Isso terá um final feliz? Com Edison descobrindo que afinal é bom em alguma coisa? Ainda não sei.

Para o Edison entrar na aventura ele tem que ser obrigado? Já sei! Se ele não fizer alguma coisa será incriminado, preso e aí a vida medíocre dele se tornará uma vida miserável de vez.

[9h01] Tô pensando em começar o conto para ganhar o tempo perdido… Vou fazer o seguinte, vou acabar tendo uma fome abissal daqui a pouco, então vou comer e depois volto para ir direto[9h02]

[9h27]Enquanto comia fui pensando… Não vou resumir tudo para ganhar tempo, ok? Uma ideia puxa a outra e o que foi se montando foi o seguinte. Edison conseguiu um emprego como garoto de recados de um empresário importante que tem ligações com o crime mais ou menos organizado da região em que ele mora e o crime organizado dos corredores políticos.

O filho desse empresário gosta de pegar mulheres negras, que ele chama de empregadinhas, boas para vadiagem e uma amiga da Gabriela, Josiane, se envolve com ele, iludida pelo glamour e sonhos de mudar de vida, no entanto a Josiane sumiu. Edison foi a última pessoa a ser vista com ela, se ele não descobrir o que aconteceu com ela a coisa toda vai explodir na mão dele, ou seja, a vida dele que nem começou vai terminar de vez depois da prisão. Mesmo que fossem dias, mas ele é um zé ninguém e certamente ficará lá esquecido nas celas superlotadas com multidões de outros homens que perderam toda a noção de justiça.

Imagem: Corredor abandonado por Matthias Haker