Imagem: Museu de História Natural – Londres – Patsi Olaeta

O salão com pé direito de cinco metros, paredes de madeira de lei e detalhes em mármore poderia ser em um museu como o Hermitage em São Petersburgo, mas é em uma casa, aliás uma mansão, no Brasil.

Sabrina está caminhando pelo meio do salão em direção a uma piscina, sim, tem uma grande piscina, azul, ocupando um terço da sala.

Duzentos pares de olhos aristocráticos se voltam para ela. Os passos firmes escondem a insegurança que gela seu estômago.

Como ela, uma jovem de 21 anos que mora em um cubículo num prédio decadente na Lapa foi parar ali?

Louise Brooks
Louise Brooks

A parede à esquerda é repleta de janelas que dão para um estreito corredor aberto para um vasto jardim de inverno. O sol invade a sala tingindo-a dos tons sépia característicos das tardes quentes de outono o que felizmente compõe maravilhosamente com seu maiô branco vintage e seu cosplay de Louise Brooks.

Três grupos se apresentaram antes dela, jovens membros daquela sociedade tornada aristocrática pelo incomensurável poder aquisitivo, uma fatia do início do século XX sobrevivendo no século XXI.

Foram performances artísticas espetaculares onde as regras são apenas precisão e jamais tocar a água.

Foi por causa do segundo grupo que ela foi parar ali. Ela os conheceu em um show de música alternativa no Circo Voador e se uniram pelo amor à arte.

Eles apresentaram uma coreografia aérea pendurados sobre a piscina, mas um deles caiu. Fora isso tinha sido impecável, mas Sabrina desconfia que eles erraram de propósito, para ela se sentir melhor. Talvez ela devesse estar ofendida pela complacência, mas não estava pois tinha certeza que não se tratava de subestimá-la e sim de saber que os duzentos pares de olhos seriam hostis à jovem pobre de 21 anos. Eles não a conheciam e isso bastava para saberem que ela não fazia parte da mesma estirpe e que, portanto, era pobre.

Sabrina chega à beira da piscina, gira graciosamente nos calcanhares. É como se ela fosse duas. Uma está tremendo de medo bem ao lado de outra que encara determinada a plateia hostil que lança olhares arrogantes contra seu pequeno corpo perdido no meio de uma luxúria que só viu em pequenas fotos na tela do computador.

– Senhoras, senhores cá estou diante de vós, uma jovem plebeia ansiosa por vossa aprovação para os seus melhores esforços físicos e dramatúrgicos – ela se impressiona com a força e projeção da própria voz e um sorriso enigmático percorre seu rosto; a cabeça fazendo movimentos curtos e repentinos em referência clara aos filmes mudos, um olhar atento veria Brigitte Helm em Metropolis.

Caminhando furtivamente diante da primeira fileira Sabrina sussurra, mas projetando a voz para que a ouçam também na última fila.

– Na verdade sou uma recém-chegada de uma antiga e nobre, mas decadente, nação do leste europeu. Nossas posses há muito se foram deixando-nos apenas o orgulho.

Alguns sorrisos irônicos despontam aqui ou ali, os amigos nos bastidores arregalam os olhos antecipando a ousadia da amiga.

– No entanto não contem a ninguém pois desejo encantá-los com minha arte e não com minha nobreza!

Levantando novamente a voz e fazendo uma mesura…

– Os tempos se transformaram, a arte assumiu cores, sons e espíritos novos, mas sem raízes não passa de lazer fútil. A caixa de Pandora foi aberta, a nobre sociedade alemã se degenerou ou recolheu-se para suas mansões.

Enquanto ela fala surgem finas passarelas sobre a piscina, largas o bastante apenas para seus pequenos pés.

Graciosamente Sabrina deixa um dos sapatos para trás, depois o outro e, no meio da frase, arremessa o corpo para trás encontrando com as mãos uma das passarelas, começa sua performance. A voz sempre firme, os movimentos precisos. Ora lentos como o louva-a-deus movimentando-se sobre passarelas que mais parecem varetas, ora são velozes e vigorosos. Seus pés encontrando com precisão os apoios.

– Nós, jovens plebeias ansiosas por uma tarde de outono na companhia da elite em seus vastos salões, nos equilibramos nas oportunidades da vida achando-nos especiais por nossas dificuldades, orgulhosas do nosso berço de panos encardidos, mas ignoramos que, também entre a elite, há sempre outra elite e aqueles que se equilibram precariamente em seus salões.

Apoiada praticamente nas pontas dos dedos dos pés Sabrina gira trocando de passarela levemente como se bailasse em uma noite de gala, a respiração marcada entre frases e a transpiração brilhando em sua testa refletem força e não cansaço. Ainda assim parece que ela pode cair a qualquer momento, a parte dela que assiste de fora receosa e frágil também teme que seu corpo, tão firme e seguro, acabe falhando.

Ela se detém no meio da piscina, as passarelas sendo retiradas lentamente, logo restará apenas a última e não haverá espaço para erros. Apoiada em uma perna ela eleva a outra lentamente, os braços se movendo como se fossem parte de uma bruma feérica, os músculos da barriga doem, a perna de apoio treme (imperceptivelmente para a platéia) pelo esforço e para manter o equilíbrio.

– Sejamos nobres ou plebeus, compartilhamos a arte de caminhar por trilhas estreitas, muitas vezes escuras ou inseguras evitando monstros às margens e falhas que jamais permitimos que os outros encontrem espiando pelas frestas das nossas fortalezas.

Sabrina caminha pela última passarela, mais estreita que as outras, mais estreita que seus pés. Os movimentos são lentos e vastos, como se suas pernas e braços não tivessem peso para ela.

Então, sem aviso, ela parece cair para frente, mas sua voz não se altera.

– Vez por outra deixamos que os outros nos vejam como pessoas normais, parecemos tropeçar e cair, mas somos senhores da vida e do tempo e controlamos cada brisa, cada folha que se desprende da árvore para seu derradeiro destino na terra entre minhocas.

Ela está apoiada nas mãos, de cabeça para baixo, as pernas girando no ar no ritmo das nuvens que passam pela frente do Sol lançando sombras no salão.

Então ela desliza para dentro da piscina. Nenhum sinal de cansaço ou desequilíbrio antecipa a falha. Será uma falha? Os amigos nos bastidores duvidam que ela tenha errado. Sabrina se mantém sob a água observando… Os segundos se acumulando, o ar esquentando no pulmão conforme o oxigênio se esgota. Mais um pouco… Mais um pouco… Na beirada da piscina surge um vulto apressado. AGORA!

O braço de Sabrina se projeta para o alto, os dedos abertos e esticados. Lentamente, sem tirar a cabeça da água, ela vai fechando a mão, o pulmão parece que vai explodir, mas não é agora ainda… A perna se junta ao braço, o pé graciosamente em ponta, outra perna se eleva para a fora da piscina, Sabrina se agarra à consciência, gira, segura a barra com as mãos e se projeta inteira para fora da água apoiando-se sobre a barra em uma posição que faz referência ao estilo egípcio de pintura humana. Ela vê que várias pessoas se levantaram de suas cadeiras, algumas certamente indignadas com a violação premeditada das regas, outras surpresas com a ousadia.

Sabrina sabe que precisa recuperar o fôlego rápido, muito rápido. Move lentamente a cabeça para a platéia, os olhos bem abertos percorrendo as órbitas de um lado para o outro, isso lhe ganhará tempo. Ela abre a boca enchendo os pulmões de ar e controlando a ofegância com a força da sua determinação.

– Nós cairemos… Em algum momento todos nós cairemos! A arte está em jamais nos deixarmos quebrar, seja pelo medo da morte, seja pela incapacidade de sermos únicos ou simplesmente de não nos encaixarmos.

Com três piruetas para trás seguidas de um salto com duas voltas no ar Sabrina pousa com precisão na borda da piscina sob aplausos mesclados com vaias de desaprovação.

Ela sorri satisfeita. Sua sombra assustada que observava de fora reunida novamente a seu corpo. A arte é perturbação, a arte é conflito e, se todos vaiassem ou aplaudissem ela teria falhado. O sucesso da arte é plantar a dúvida.

Obs: Esse mini-conto foi um sonho essa noite