Sobre o projeto

Esse é o décimo sétimo conto do projeto #UmSábadoUmConto  (Post explicando o projeto)

Durante a semana as pessoas votam em estilo, gênero, público e época. O autor (eu) só pode saber o resultado às 8h do sábado e tem até meio dia (mais ou menos) para terminar o conto.

Cada conto é escrito com um processo criativo diferente (veja no final).

O que você vê a seguir é o conto com a mínima revisão. Você pode ler sem revisão no Google Drive.

O Conto

A sessão do Senado finalmente tem quórum para discutir questões climáticas, energéticas e de preservação do ecossistema. Ricardo Pereira é um dos poucos políticos que parecem compreender a gravidade do problema, mas é visto com desdém por seus colegas, ou por estarem muito satisfeitos com as verbas de campanha que recebem de setores da indústria interessados na exploração de petróleo para seus diversos usos, ou simplesmente porque acreditam que a Terra é um tipo de organismo vivo que sempre manteve e sempre manterá a vida sobre sua superfície.

Ricardo se coloca atrás do microfone para se dirigir à casa. Muitos dos seus colegas formam pequenos grupos de papos paralelos, desligados do que acontece ao redor. Exibem sorrisos e conversam como adolescentes trocando figurinhas de jogadores de futebol.

– Caros colegas, caras colegas… Todos nós devemos ter consciência de que nosso planeta não tem predileções a respeito do tipo de vida que se abriga sobre sua fina superfície. Que por cinco vezes nosso planeta assistiu extinções em massa que levaram à aniquilação de formas de vida predominantes substituídas por novas espécies que surgiram através da adaptação às novas condições. As formas de vida atuais dependem do oxigênio que não chega a 21% da nossa atmosfera composta principalmente por nitrogênio, útil para vegetais, mas praticamente inútil para a maioria dos animais.

Ele olha ao redor enquanto fala. Seu discurso chama atenção de algumas cabeças que se votam para ele, mas a maioria parece já saber do terço que ele sempre recita. Ricardo pensa em como seus colegas são patéticos e ignorantes, exceto por umas poucas exceções. Mesmo quem ouve seu discurso em geral não entende as bases científicas que lhe dão respaldo e acreditam nele simplesmente porque o acham convincente.

Ele continua decidido a dar uma virada na apatia que costuma dominar a Casa durante seus discursos…

– A questão, senhores e senhoras, é que, antes de nós humanos desaparecermos, veremos o fim dos bichinhos que tantos de vocês e dos seus eleitores gostam de defender, afinal temos como criar habitats para nós, mas os animais selvagens não e serão os primeiros a perecer como já está acontecendo. Isso não é problema dos seus netos e nem mesmo dos seus filhos, seus próximos mandatos podem depender disso muito antes do que vocês pensam.

Ele usou um tom de voz frio em vez do costumeiro discurso inflamado rico em perdigotos cuspidos contra o microfone, olhos esbugalhados, rostos vermelhos e veias saltadas. Ele falou como quem noticia um decreto de morte. Mais rostos se viraram.

– Estou aqui hoje para revelar um segredo que pode colocar minha vida em risco, um segredo pelo qual muitos já desapareceram e outros tiveram que desaparecer espontaneamente para continuar seu trabalho.

Nas galerias uma jovem de cabelos curtos muito encaracolados formando uma nuvem ao redor do seu rosto, olha com aprovação enquanto escreve velozmente em seu celular. Ela não aparenta ter mais do que 16 anos, mas seu olhar é firme e penetrante denunciando uma experiência e maturidade que não condizem com sua idade aparente.

Em algum lugar do planeta um grande monitor em uma sala sem janelas que serve para refeições coletivas e reuniões exibe sua mensagem:

“Ele está prestes a falar”.

– Como sabemos passamos os últimos 200 anos devolvendo à atmosfera carbono que foi capturado há quase 100 milhões de anos, quando as formas de vida predominantes eram muito diferentes das atuais e temos não apenas que parar de fazer isso, mas retirar os gases estufa que foram inseridos artificialmente. O maior obstáculo para isso é a falta de alternativas para produzir energia para manter a estrutura da nossa civilização e ir muito além produzindo várias vezes a nossa necessidade energética para alimentar máquinas que façam a recaptura de carbono e de metano. Esse obstáculo não existe mais… Ele é mantido apenas pela força da ameaça de grandes corporações cuja base econômica está no petróleo ou que não tem como obter lucro em uma sociedade de fartura energética. Hoje vou mostrar provas disso de duas maneiras. A primeira é um vídeo que me foi enviado por contatos cujas identidades não posso revelar simplesmente porque não as conheço.

A um sinal as luzes se reduzem e uma projeção começa na tela ao lado do microfone. Dessa vez ele consegue a atenção de toda a Casa. Ele sabia que podia contar com as décadas de condicionamento da TV para atrair a atenção de todos.

A grande tela mostrava uma enorme caverna submarina. Uma esfera que parecia de vidro estava colocada no centro da câmara com talvez 20 metros de água acima e abaixo. Um som agudo e melódico enche os alto-falantes enquanto Ricardo explica.

– O que os colegas estão vendo é um reator de fusão à frio. Essa frequência de som ativa a vibração de elementos no centro da esfera e dutos levam a água até próximo desses componentes que logo estarão mais quentes que o interior do nosso sol.

Um flash dispara do centro da esfera deixando a tela totalmente branca por alguns segundos enquanto a os sensores da câmera se ajustam. Quando a imagem volta vê-se o que parece um sol dentro da esfera que parece de vidro e um fluxo intenso de vapor girando ao redor do sistema. A câmera se move acompanhado o fluxo até um conjunto de dezenas de turbinas que se movem velozmente resfriadas pela água à volta.

A jovem na galeria volta a mexer no celular e a tela na sala distante mostra outra mensagem.

“Ele mostrou o filme. Vou liberar os projetos agora”

– É claro que isso pode ser apenas efeito especial, por isso meus contatos garantiram que, enquanto falo, estariam liberando publicamente os planos desse dispositivo construído secretamente em uma base que hoje é mantida energeticamente apenas por esse reator de fusão que produz energia suficiente para abastecer metade da necessidade energética da nossa civilização. Esses projetos estão no sequinte IP: 194.71.107.80. Isso quer dizer que vocês podem digitar isso em seu navegador para baixá-los. Qualquer pesquisador, universidade ou grupo interessado em construir uma usina dessas pode baixar os esquemas e, em seis meses, ter um reator de fusão operacional. Ele pode ser feito até em caixas d’água com apenas 40 mil litros. A crise energética terminou. Agora depende só de acabarmos com o monopólio do petróleo retirando o apoio político dessas empresas.

A moça na galeria pede licença e se dirige à saída ainda deslizando os dedos delicados pela tela do celular.

“Está feito”

Surge na tela do refeitório/sala de reuniões que se enche de aplausos e vivas de quase uma centena de homens e mulheres que abriam mão das suas vidas pessoais vivendo sob a terra nos últimos anos para realizar aquele projeto.

Depois de se apresentar Ricardo encontra um lugar reservado e pega seu celular.

“Como foi possível fazer isso? Os custos da pesquisa? O transporte de equipamentos para onde quer que seja o reator de fusão…”

Ricardo escreve em um aplicativo de texto criptografado que seu contato lhe instruiu a usar sem saber que ela é uma mulher e que está no banheiro a poucos metros dele… Tudo que ele sabe dela é seu nome código “Ponto 8”.

“Posso e devo te revelar que há financiamento de grandes empresas de economia digital, empresas que vivem de distribuir informação, bits, e não átomos. Essa é a nova economia e o projeto só foi possível graças a elas. Você deve saber disso para entender que não está sozinho e que nós, hackers, não somos seu único apoio. Você acabou de garantir toda verba de campanha que já sonhou e a nossa proteção contra outros grupos hackers comprometidos com a velha economia.”

Passam alguns segundos e a tela mostra “Ponto 8 está escrevendo”

“Como sinal de confiança estou disposta a me encontrar com você. Me encontre em meia hora no café gourmet no museu de arte de Brasília.”

Ricardo mal teve tempo de ler a mensagem pois ela se auto-apagou em menos de 30 segundos depois de ser exibida.

Então Ponto 8 era uma mulher? Ele nunca tinha imaginado isso.

Já imaginando que esse pessoal é paranoico com segurança ele pega seu carro até uma rua próxima do metrô, anda duas estações e pega um táxi para o seu destino. Chega ainda com alguns minutos de antecedência olhando ao redor esperando uma mulher entre 30 e 35 anos, um pouco mais velha que ele e poderosa. Ele se sente atraído por mulheres poderosas.

Senta-se numa mesa perto de um canto e fica olhando ao redor buscando por uma mulher que se encaixa em suas expectativas.

Uma adolescente vem andando entre as mesas com um skate debaixo do braço e uma bolsa cheia de folhetos que vai distribuindo de mesa em mesa, algum anúncio de peça de teatro ou performance sendo realizada no museu, certamente. Ele a observa achando interessante como ela parece segura apesar da pouca idade e da falta de vaidade. As sobrancelhas são grossas e os cabelos arredios encaracolados ao redor do rosto jovem destacam o sorriso inocente.

Ela chega à sua mesa e ele já faz sinal que não, preocupado que seu contato se retraia ao ver que ele está sendo abordado para alguém. Ele já identificou uma mulher numa mesa próxima, cabelos loiros bem presos na cabeça formando um pequeno rabo de cavalo, um vestido claro e justo, uma mulher de uns 28 anos, portanto um pouco mais nova que ele, mas dotada da postura que ele está acostumado a ver nas jornalistas mais dedicadas. Certamente ela deve ser a Ponto 8.

– Tinha certeza que você não adivinharia que era eu…

A jovem estava ao seu lado e de costas para todas as outras pessoas no café. Será que terei que te dar ponto 8 razões para acreditar que sou seu contato?

O sorriso infantil tinha desaparecido. O olhar que se dirigia a ele definitivamente não era o de uma adolescente. Ricardo percebe que seu queixo caiu e fecha a boca rapidamente antes que ela se abra denunciando sua surpresa, o que é inútil, claro, o olhar da jovem hacker já tinha deixado claro que havia percebido sua surpresa.

Olhando mais atentamente ele percebe que talvez ela seja realmente muito mais adulta que parece, uma dessas pessoas que consegue parecer adolescente ainda que esteja perto dos 30 anos, mas é realmente impossível ter certeza…

Ela senta ao seu lado, o skate sob os pés que brincam deslizando-o para frente e para trás.

– Você está se arriscando ao nos ajudar. Admiro muito isso Ricardo. Nós admiramos muito isso. Para sua própria segurança é melhor que você não saiba quem nós somos, mas achei que você merecia um voto de confian]ca da nossa parte e por isso decidi me revelar a você.

Ricardo é um homem experiente nas relações com outras pessoas, ele sabe farejar os verdadeiros sentimentos que os outros tem em relação a ele: admiração, desprezo, interesse, indiferença… Ela tem interesse nele. Está bem claro que ela queria se aproximar dele por outros motivos.

– Ponto 8 ? ele diz bem baixo para que ninguém mais ouça o nome dela – Confesso que você me surpreendeu! Esperava alguém mais… Que aparentasse ter mais idade, uma pessoa sisuda e sem graça. No entanto não cairei no erro de achar que você é uma menininha boba.

192.168, como ela costuma ser chamada pelos mais próximos (Ponto 8 é um código dentro do código, resultado da divisão de 168 por 192 que dá .875) sente um breve oco dentro do peito, aquela sensação de ser admirada por alguém que nós admiramos. Ela não está acostumada a essa sensação. Naturalmente desconfiada não costuma se impressionar com elogios, mas tem algo na forma do Ricardo olhar para ela, no tom de voz que parece abraçá-la e admirá-la inteiramente.

Eles conversam por pouco mais de 15 minutos pois Ponto 8 determina essa regra para evitar de chamar a atenção. Ricardo olhando para o folheto como quem está interessado no que ele anuncia e ela fazendo gestos largos como os adolescentes costumam fazer, Ricardo se pergunta se ela é uma atriz brilhante ou se realmente carregou a adolescência para a vida adulta, ou ainda se na verdade não tem muito mais de 19 anos.

– Vou lhe permitir três perguntas, Ricardo. Se eu não puder responder te deixo fazer outra, ok? Até completar três respostas.

– Certo… Vejamos… Existe um movimento para restringir financiamentos de campanha por empresas, como os patrocinadores do projeto poderão colaborar para a minha próxima campanha política? Não me leve a mal, mas a impressão que temos é que grupos hackers anonymous não se importam muito com a forma oficial de fazer as coisas, mas eu me importo, eu preciso me importar.

– Sem ofensas! É verdade que nós temos nossas próprias leis, mas respeitamos, pelo menos o meu grupo que não é um Anonymous qualquer, as regras que os nossos aliados devem seguir. O sistema deve ser mudado e não transgredido pois a transgressão é um instrumento, mas não estabelece novos paradigmas, ela é o conflito de transição de um modelo para o outro. Você receberá apoios de pessoas físicas apenas. Gente idônea. Sabemos que grupos que não são ligados a nós já estão analisando os documentos que divulgamos e eles repassarão o conteúdo em seus sites. São grupos sérios e respeitados em universidades no Brasil e em outros países. Temos contato com algumas pessoas chave que ajudarão a trazer investimento da comunidade deles para sua jornada política. Temos confiança no seu comprometimento com a causa pois sabemos que você é cientificamente bem formado e que, portanto, entende o desafio que temos pela frente. Outra pergunta?

– Qual é o seu papel na organização? Digo, desculpe dizer, mas você me fascina!

O breve oco que 192.168 sentiu antes agora parece um fenômeno cósmico, um buraco negro que conduz a regiões do seu coração que ela procura deixar bem protegidas. Ele se fascina por ela? É claro que outras pessoas sentem o mesmo por ela, mas tem algo diferente em Ricardo.

Na verdade ela é uma organização em si mesma. Ela é um roteador, daí o apelido conhecido somente por quatro ou seis pessoas mais próximas e de confiança… Nenhum amigo dela do mundo Anonymous sabe seu nome de batismo ou onde ela morava. Somente quatro pessoas em sua vida sabem toda a verdade sobre o ativismo dela (e seus pais não estão entre elas). Sozinha ela construiu uma rede ligando cientistas, jornalistas, membros de grupos Anonymous e orquestrou a revelação dos planos para o mundo. Ela precisa ser extremamente cautelosa pois ela é a única peça de conexão. Se ela for comprometida todos poderiam ser identificados e eliminados… Ela está pronta para morrer se for descoberta, mas não pensa muito nisso já que tinha tudo preparado para apagar todos os traços digitais das suas atividades e outros planos.

– Sou apenas um telefone cego que liga você aos pesquisadores. Não sei onde eles estão, quem eles são… Assim se eu for comprometida só poderia revelar a sua identidade, mas você já fez isso… Até hoje eu era uma peça chave na sua segurança, agora sou apenas um telefone.

Era mentira, claro, mas não foi se entregando às imprudências do coração que 192.168 conseguiu chegar tão longe.

– Somente um telefone? Pode ser sua função, mas para mim está claro que você é uma pessoa muito mais interessante que apenas isso. Tenho só mais uma pergunta… Eu a verei novamente? Digo… Sem essa limitação de 15 minutos? Não! Espere! Quantos anos você tem realmente?

– Aí já serão quatro perguntas… Você está trapaceando. – O sorriso dela é divertidamente repreendedor, como quem fala com um menino malcriado. Tenho idade suficiente, rapaz! E tem um albergue pouco conhecido, frequentado por gente que não fará ideia de quem você é e menos ainda de quem eu sou…

Ela aproxima os lábios da orelha dele e sussurra o endereço. Sua respiração acariciando o pescoço do Ricardo que se controla para não se arrepiar.

– Agora você vai embora por ali e eu por lá, certo? – E falando mais alto – Espero que goste da peça moço!

Ela salta no skate e vai deslizando atraindo o olhar repreendedor do segurança.

Ricardo paga a conta repetindo mentalmente o endereço do albergue ansioso pelo próximo passo com a Ponto 8. Para ele ela ainda é um mistério, uma mulher forte que soube não se entregar em seus braços, que não confia plenamente nele e ele gosta de fazer que as pessoas confiem plenamente nele…

192.168 se certifica que ele já está indo embora e entra no banheiro… Lá ela encontra com a jornalista que tinha chamado a atenção de Ricardo antes. Seus instintos são bons… Ela realmente tinha algo a ver com o seu encontro.

– Então, Jaque? O que você achou do sujeito? Eu… Eu marquei de encontrar com ele mais tarde…

– 192… Não sei, cara… Ele é político… Políticos são bons em esconder suas intenções… Quer dizer, sabemos que ele realmente acredita nas suas causas, que ele realmente já se arriscou outras vezes ainda mais que agora, mas isso não quer dizer que seja uma boa pessoa. Meus instintos estão me incomodando…

A 192.168 é uma pessoa franca com os amigos próximos e sabe escolhê-los pela capacidade de lidar com a franqueza dela.

– Jaque? Você está com ciúmes?

– Ah! Tô sim! Sei como é quando as pessoas decidem namorar e deixam os amigos de lado, né? Mas a gente está ligada por mais do que amizade, nós temos um projeto, uma causa a qual somos mais comprometidas do que com a maioria das outras pessoas.

– Tá Eu vou ficar ligada, tá Jaque? Sei que você não é nada boba, admiro muito sua capacidade de julgar as pessoas. Fica na boa! Vai para a redação que já te enviei os endereços de ftp para pegar os artigos que a galera está escrevendo em linguagem leiga sobre o projeto do reator, ok? Olha… te amo!

Jaqueline se despede da amiga com um beijo na testa e um “se cuida”. 192.168 desconfia que a amiga sente mais do que amizade por ela, mas tem medo de estragar tudo se envolvendo, ela prefere não namorar pessoas do seu círculo mais próximo. Amor é complicado… Gera expectativas, compromissos… Ela prefere as pessoas que só conhecem os códigos do seu nome código como Ponto 8, 27 ou 1,14i. Pessoas que não chegam nem perto de tocar sua essência.

Quando ela se encontra com Ricardo à noite eles sentam em uma mesa que fica longe da luz. O albergue parece mais uma taberna medieval. Seria impossível para alguém na mesa do lado ver o rosto deles.

A conversa começa em amenidades, coisas que eles gostam, filmes, livros (ela se surpreende ao saber que ele leu vários de Cory Doctorow) e músicas. Bebem uma, depois duas e aí três garrafas de cerveja, o dia foi quente e a noite está seca como costuma ser em Brasília.

O dono do albergue a conhece, mas a chama de 27. Ricardo se pergunta se essa é a idade real dela.

– Quantos nomes você tem Ponto 8?

– Para a maioria das pessoas somente um… Você é um privilegiado de conhecer dois.

Ela não sabe bem por que, mas quis que ele sentisse que é mais importante para ela do que a maioria. O sorriso do Ricardo parecia um galanteio em reconhecimento pela importância, mas era satisfação por ver que ela estava entrando em sua teia…

Ricardo realmente estava disposto a arriscar quase tudo pela causa da manutenção do ecossistema necessário para a manutenção das formas de vida atuais, ele não é idiota e percebe que essa é a única coisa lógica a fazer e, além disso, as pessoas reconhecem o poder de quem está disposto a se sacrificar por grandes causas.

No entanto, nas relações com as outras pessoas, é o poder que o alimenta. Sentir que o outro depende dele e quanto mais poderosa é a pessoa e quanto mais profunda a dependência, maior é o seu prazer. Ele gosta de ver a segurança e independência delas se partir em milhões de pedaços conforme vão dependendo mais e mais da aprovação e do poder dele. Quando percebe que a pessoa não é mais capaz de viver sem ele o homem carinhoso e agradáável que ele foi se transforma em um mestre exigente e cruel.

Ricardo jamais tocaria violentamente no corpo de outra pessoa, isso não lhe dá prazer e deixa marcas… Mas seus dedos se engendram como tentáculos em cada fresta da alma do outro. Ele saberá que dobrou a Ponto 8 totalmente quando ela lhe revelar seu nome de batismo, ele quer dissecá-la totalmente.

Entretanto isso tudo ainda está no futuro de 192.168. No momento ela está com um homem culto, cortês e fascinante. Suas pernas se roçam sob a mesa, seus olhos se perdem no brilho mútuo de admiração e desejo.

Ela escolheu o albergue pois queria aquele homem e ali sempre havia um quarto separado para ela.

Seus corpos se encaixaram como se tivessem sido feitos um para o outro.

Nos 5 anos desde que saiu de casa para rodar o mundo por conta própria, ainda adolescente, 192.168 tinha conhecido muitos homens e mulheres, mas nunca alguém que a preenchesse daquela forma, ela parecia ser o universo para ele, todos os seus sentidos envolvidos pelos braços fortes, pela voz grave que percorria sua pele enquanto os lábios deslizavam úmidos por suas pernas, quadril, seios, pescoço e orelhas antes de chegar à sua boca. Ela sentou sobre ele jogando a cabeça para trás e segurando firmemente o peito peludo e musculoso, mas ele logo a girou ficando por cima e dominando-a… E ela gostou…

Nas semanas seguintes, sem que ela notasse, a dinâmica da cama se transferiu para a relação dos dois. Ricardo se apagava e parecia genuinamente magoado quando ela não lhe confiava algum segredo, primeiro pequenos, depois outros maiores. Até que um dia, quando estavam sozinhos à beira do lago, ele lhe perguntou porque ainda só conhecia dois dos seus nomes? Disse que a vida dele estava nas mãos dela, mas que ela não estava tão entregue à relação.

“Tenho certeza que algum amigo seu coloca minhocas na sua cabeça, diz que não se pode confiar nos amores, mas amor é o que há de mais importante em nossas vidas, otcho”

“Otcho” foi o apelido que ele deu a ela dizendo que aquele era só deles.

Realmente a Jaque vinha reclamando do afastamento dela, dizendo que ele a estava afastando dos amigos de verdade, que nunca cobraram nada dela e foi então que 192.168 se lembrou do alerta da amiga.

“Escreva na sua cabeça, 192, nessa sua cabecinha brilhante, bondosa e inteligente: Quem te ama não te cobra coisas para ele mesmo… Te cobra coisas que fazem bem a você! Como estou fazendo agora, entende? Quando alguém te cobrar fidelidade, quando você sentir que deve a essa pessoa para ela não ficar magoada com você então você provavelmente está em uma relação perversa… E você é a vítima”.

192 se levantou imediatamente. Virou para ele e disse “Tenho que ir. Não sei se estou pronta para isso”.

Era um teste. Ela precisava saber como ele reagiria. Se ele a respeitaria ou se a humilharia ao ver seu momento de indecisão em cima do muro para dar o golpe de misericórdia em seu desejo de agradá-lo a qualquer custo.

– Você não se importa comigo, Ponto 8! Você acha que seus amigos de aventura podem te dar o que eu tenho para te dar? Você vai envelhecer, deixar de ser útil para eles e será jogada fora, eu não! Quero você sempre ao meu lado para eu cuidar, para te deixar segura! Você um dia será achada pelos inimigos que tem construído…

E ele metralhou sobre ela uma sequência de ameaças e agressões. Os olhos dela se enchiam de lágrimas e ela parecia estar se quebrando, parecia estar prestes a se entregar para ele, mas na verdade ela lamentava ter sido tão cega. Ter se deixado enganar. Atrás do rosto torcido de sofrimento ela pensava febrilmente se ele poderia ser um risco para as pessoas que tornaram o projeto possível… Não? Ele só conhecia o albergue. No máximo 27 e Ponto 8 teriam que morrer… Ela tinha tudo planejado desde sempre, várias formas de morrer… Teria que sumir de Brasília talvez para sempre, claro.

Sem que ele notasse ela destravou o celular, deu dois cliques na tela. A Jaque não demoraria a mandar socorro. O aplicativo desenvolvido por ela já enviava o local e uma frase: transporte anônimo.

192 decidiu fazer o jogo dele. Se ajoelhou pedindo perdão enquanto o transporte não aparecia.

– Vou te contar tudo, meu amor! Eu só preciso de algumas horas para apagar meus rastros! Vou te provar como confio em você, como você é tudo para mim!

Era outro teste… Uma pessoa que realmente nos ama e nos respeita não quer ser tudo para nós, quer que nós sejamos nossos próprios melhores amigos, que sejamos independentes.

Ele se transformou, ela nunca o vira assim! Ele olhava de cima para ela triunfante, havia ódio no olhar dele? Como ela pode se deixar enganar? E mesmo agora uma parte dela dizia que ela merecia aquele ódio, que ele tinha dado tanto para ela e que só havia recebido desconfiança e segredos guardados, segredos bobos, aliás as próprias causas dela lhe pareciam tolas agora.

Apareceu um táxi piscando o farol. O motorista colocou a cabeça para fora e disse “Me mandaram pegar uma moça descabelada de skate aqui, é você menina?”

Ele olhava desconfiado para a cena. Um homem de mais de trinta anos e uma moça muito jovem chorando que imediatamente correu para o seu carro antes que ele tivesse tempo de se arrepender.

Olhando para trás ela gritou para o Ricardo:

– Hoje de noite, amor!! Me espera no albergue! Vou te provar o meu amor!

Ela entra no táxi enxugando as lágrimas, digitando no celular e dizendo para o motorista sair rápido “vai… moço! Vai rápido! Me deixa no metrô. Qualquer metrô…”

O celular da Jaqueline treme. Ela ainda está na redação. “Estou indo para a sua casa. Perdão… Perdão… Acabou!!”

“Não tem nada para se desculpar! Chego em casa em meia hora!” – é a resposta da Jaqueline

Quando chega em casa Jaqueline já encontra a 192.168 sentada descalça com as pernas cruzadas na cadeira que fica na varanda. Ela olha para o infinito bebendo uma caneca de café.

– Jaque… Que merda… Você tinha razão e eu me afastei de você. Semana passada até fui grossa, disse… Disse que você queria me afastar dele como se você tivesse motivos egoístas para isso, mas você só queria o meu bem… Ele é um monstro! E eu sou idiota…

– Deixa de ser boba, 192! O mundo está cheio de monstros. Eles são especializados no que fazem… Sabem como apavorar os corajosos, corromper os honestos, controlar os fortes… E você acabou notando! A maioria demora anos para perceber e aí já é como o vício no cigarro: sabem que aquilo os está matando, mas sentem que já é tarde, que é algo de que não se livrarão… Eu sei bem como é isso. Até hoje sofro e… Tenho medo de me envolver.

– Eu tenho que morrer, Jaque… Você vai ter que me ajudar em mais isso… Por favor?

– O QUÊ??? De jeito nenhum!!! Aquele idiota não merece isso! Você é uma moça linda e cheia de vida pela…

192.168 encosta o dedo indicador nos lábios da Jaque para que ela pare de falar. A amiga se cala e olha para ela entre perplexa, preocupada e curiosa. Com a outra mão 192 segura o rosto da amiga e lhe dá um beijo nos lábios macios.

– Calma, tá? Eu só vou parecer morrer! Desculpe! Me expressei mal! É que eu nunca te disse que tenho planos prontos para matar meus disfarces em caso de emergência. Eu já matei o meu nome de batismo… Lamento pelos meus pais, eles não mereciam, mas eu precisava proteger a minha família. Agora vou matar a Ponto 8 e a 27.

– O que eu tenho que fazer, 192?

– Só queria que você ficasse comigo… Você já disse tantas vezes que queria mudar de ares… Quer se mudar comigo para outra cidade? Tenho grana para nos manter por um ano enquanto você procura outro trabalho. Sei que é rápido, que… Bem, a gente se conhece há três anos, né? E você tem meu nome de verdade! 192.168! O outro eu mesma não quero mais lembrar. Pode ser assim?

– Claro! Mas você sabe que morar junto é diferente de ser muito amigas, né? Diferente de namorar? De ser amantes?

– Não… Eu nunca fiz isso, mas se vou fazer com alguém, de todas as pessoas que já conheci… Quero que seja com você!

Mais tarde o dono do albergue entrega um papel com um IP para o homem que vinha se encontrando com a 27 ali nas últimas semanas. O bilhete dizia “assista sozinho”.

Era um vídeo com ela sentada em uma cadeira no meio de um tipo de armazém. Olhando para a tela ela dizia que não podia dar a ele o que ele precisava, que ele ficaria em grande perigo, que essa era a única saída… E um clarão interrompe a transmissão. Ele pede para ligarem a TV do salão e colocar no canal de notícias. Logo vai ao ar a história da explosão em um galpão repleto de material inflamável. Ricardo sorri… Ela morreu por ele…

Observações

Esse conto me capturou… Os personagens são mais reais do que a média, espero ter passado isso.

Fiquei com receio de ficar a impressão de que a 192.168 é menor. Ela não é, mas não quero revelar que idade eu acho que ela tem. Certamente é menos de 28 e mais de 17 ;-)

Tive que abandonar o elemento scifi para poder contar a história do romance. Se for desenvolver esse conto vou intercalar na história os jogos políticos e as várias empresas pequenas que surgirão usando a nova tecnologia e desenvolvendo-a criando dispositivos ainda menores permitindo o uso em motores de enormes navios e no projeto de naves espaciais do tamanho de cidades que seriam construídas em algumas décadas com material colhido de asteroides. Coisas assim, mas com mais foco nos conflitos conforme pequenas usinas de fusão são construídas em cada cidade e a energia excedente é usada para alimentar máquinas de recaptura de carbono e outros poluentes.

Queria explorar mais as pessoas no reator de fusão, mas aí já ia deixar de ser um conto para ser um livro. Assim mesmo vou usar uma imagem para ilustrar o post que pretendia usar quando comecei o conto e achei que seria centrado no reator porque ela serve bem ao mergulho profundo no relacionamento em que a 192 se meteu.

O processo criativo

Até o décimo quarto conto eu seguia uma “fórmula” criativa para cada conto. Achei que seria interessante para o leitor interessado em como funciona o processo criativo, mas era uma coisa artificial, né?

Essa fase acabou e agora entro em outra mais livre! Ufa!

Vou descobrindo junto com os leitores as melhores formas de compartilhar o processo criativo agora que posso deixar a mente solta. Esse é um dos objetivos principais dessa segunda fase (além de escrever que é algo que me faz muito bem!!)

[8:12] Tô meio atrasado, mas o calor do Rio me deixa mais lento nessa época. Vamos lá ver o que decidiram que devo escrever hoje!

Romance, adulto, presente, scifi. Adoro quando dá umas coisas menos comuns como scifi no presente.

Entre as sugestões teve: humor, cyberpunk, política, ficção, realidade alternativa.

Sempre tem alguém pedindo cyberpunk, né? O estilo parece em alta entre os meus amigos :-) (não, não é… Confundi com steampunk… Vai seguindo para ver quando me toquei do erro absurdo)

Tenho tido vontade de fazer um conto adulto mais adulto do que vinha fazendo, e um romance que não seja fofo, mas que aborde as relações perversas em que muitas vezes nos envolvemos sem perceber, mas também quero usar as sugestões.

O humor pode quebrar um pouco o peso de um relacionamento perverso.

Dá para colocar também uma realidade alternativa em que a tecnologia cyberpunk (steampunk) seja comum no presente e isso aliás dá uma boa puxada para questôes políticas como as tramas para impor a tecnologia do petróleo, mais poluente, à do vapor.

Cyberpunk (Steampunk) não é bem scifi, né? Preciso de algum elemento com tecnologia de ponta ou do futuro…

O problema de um conto com tantos elementos é que ele pode ficar longo para menos de 4h escrevendo.

Já estou delineando algumas ideias aqui… Lembrei de uma cena de Final Fantasy VII (o filme) em que duas ideias concorrentes são expostas para um grupo de políticos. Gosto muito dessa cena porque me permite abordar questões como a falta de alfabetização científica dos políticos e as consequências disso. Pensei até em começar com essa cena já deixando claro qual é o tema e ambiente do conto.

Gente!!! O calor realmente fundiu meus neurônios!!! Hahahahaha!! Estou falando em cyberpunk pensando em steampunk! Affe!

Pelo menos não passei meia hora pensando no caminho errado dessa vez! E dá para adaptar… Posso deixar a tecnologia de combustível fóssil no papel de tecnologia a ser substituída, o elemento de ficção científica vem de alguém que desenvolveu uma técnica de fusão (tenho até uma história que veio de um sonho que serve bem para isso) e o cyberpunk fica para os ativistas que se colocam contra o jogo político da imposição do petróleo.

Estou com vontade de colocar o vilão como protagonista… É algo antipático e meio desagradável de fazer, mas é bom material para abordar um romance perverso.

[8:33] Vou dar uma pausa para ligar o ar (não sei o que pensei ao não ligar logo!) e tomar um café rápido [8:49]

O que já decidi do conto:

  • Começa com um protagonista homem engajado na substituição das fontes de energia fósseis por outras renováveis. Ele é político e tem boa formação em ciências obtida na escola pública… Não sei ainda como ele obteve sua formação… Já sei, vídeos no YouTube. Se fosse pela escola esse já seria um elemento de realidade alternativa hahaha e acho que não vou usar isso.
  • A 192.168 é uma jovem de idade indefinida, parece ter 16, mas tem os conhecimentos de alguém com pós graduação em segurança de TI. É nossa protagonista cyberpunk. Ela será o contato de ligação entre o cara e uma equipe de engenheiros cyberpunk que desenvolveu uma tecnologia de fusão viável e já funcionando em pequena escala. Onde? … No Brasil, com certeza? Aha!!! Onde tem aqueles olhos d’água? Vou pesquisar…
    Outros nomes dela: 1,14i (192/168), ponto 8 (de 168/192), 27 (soma dos algarismos).
    Explicação do nome: ela é um roteador. Uma das únicas que pode ligar políticos, pesquisadores, jornalistas e grupos ativistas que precisam trabalhar anonimamente pela causa comum de estabelecer uma tecnologia de energia limpa.
    A personagem é inspirada na 26 de Cinema Pirata e na “roteadora” de Trem Noturno para Lisboa (vi o filme, e o livro está na fila).
  • O protagonista homem, apesar de ser um herói para a manutenção da vida no planeta se revela perverso em suas relações sociais e se envolverá com a Ponto 8 pressionando-a já no final da história a ficar com ele dizendo que o terceiro personagem importante é um sonhador que jamais poderá lhe dar a estabilidade e recursos que ele pode dar.
  • O terceiro elemento do triângulo amoroso será… uma jornalista. Ela será amiga da 27 e secretamente apaixonada por ela.

Bem, melhor começar o conto porque me atrasei um pouco mais do que deveria, se bem que acho que a história está mais bem resolvida na minha cabeça do que na maioria dos outros contos. Vou só pegar água… [9:10]

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Imagem ilustrativa

Fonte: Blog da Mary – Viktor Lyagushkin